TÓQUIO – De Bolsonaro réu à maneira como o Brasil pretende responder ao tarifaço de Donald Trump, passando pela satisfação com o resultado da viagem oficial ao Japão, pelo desempenho da economia e pela relação do Planalto com o Congresso: horas antes de deixar Tóquio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez um giro pelos temas mais candentes da pauta política brasileira e não poupou críticas a Trump e Bolsonaro, ao mesmo tempo que se declarou muito satisfeito com os resultados da viagem ao país asiático. Lula concedeu entrevista coletiva no hotel onde ficou hospedado antes de seguir viagem para Hanói, capital do Vietnã.
Horas após o STF tornar Jair Bolsonaro réu, mesmo fazendo a ressalva de que não gostaria de palpitar sobre a ação penal a que o ex-presidente vai responder, Lula disse que as provas contra ele são contundentes e que espera justiça. “É visível por todas as provas que ele tentou contribuir para o meu assassinato, para o assassinato do vice-presidente (Geraldo Alckmin), para o assassinato do ex-presidente da Justiça Eleitoral (Alexandre de Moraes) e todo mundo sabe o que aconteceu neste país”, afirmou. “Não adianta agora ele (Bolsonaro) ficar fazendo bravata, dizendo que está sendo perseguido. Então, ao invés de chorar, saiba que você cometeu um atentado contra a soberania deste país”, disparou.
Ao ser perguntado duas vezes sobre as tarifas impostas pelos Estados Unidos, Lula voltou a dizer que Trump “não é xerife do mundo” – ele já havia se referido assim ao colega americano, em outra oportunidade. Também afirmou que o Brasil vai recorrer à OMC (Organização Mundial do Comércio) contra a taxação de 25% do aço brasileiro. Se não conseguir reverter a decisão de Trump por essa via, disse Lula, o Brasil vai responder aplicando o princípio da reciprocidade, sobretaxando também a importação de produtos americanos.
Instado a falar sobre a comitiva de parlamentares que convidou para acompanhá-lo na viagem à Ásia – incluindo os presidentes da Câmara e do Senado, Hugo Motta e Davi Alcolumbre, e seus antecessores, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco –, Lula pregou um ambiente de paz com o Congresso, que mire os interesses do Brasil, independentemente de divergências políticas ou ideológicas. A fala revela a tentativa do presidente de adotar um figurino “paz e amor” na relação com os parlamentares. Segundo Lula, a partir de agora os presidentes das duas casas serão sempre convidados para as viagens porque essa é uma forma de indicar amadurecimento político. Ele justificou a presença de Lira e Pacheco na comitiva com o argumento de que “rei morto não é rei posto”.
Quanto aos resultados da viagem de Estado ao Japão, o presidente se esforçou para passar a ideia de que não viajou a Tóquio apenas para tratar da liberação da importação de carne bovina – algo que o próprio governo propagandeou que seria uma das principais pautas da visita. Ainda assim, Lula defendeu com ênfase que o Japão passe a comprar dos frigoríficos brasileiros. Ele disse esperar que até o final deste ano a barreira japonesa ao produto brasileiro seja finalmente levantada. Mas foi além na expectativa: quer que o Japão amplie de forma mais ampla o comércio bilateral com o Brasil, que já foi de US$ 17 bilhões, mas veio caindo até chegar a US$ 11 bi no ano passado. Lula também quer avançar nas tratativas para se chegar a um acordo comercial entre o Japão e o Mercosul, que a partir do próximo semestre terá o Brasil na presidência. Lula disse ainda que a economia brasileira vai crescer neste e no próximo ano. “Quem quiser apostar, pode jogar”, afirmou.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Aposta no crescimento da economia
“Sou uma pessoa que creio muito em Deus, e eu sou homem que tem muita sorte, porque desde que eu deixei a Presidência em 2010, a economia não tinha crescido mais acima de 3%. E eu voltei, nos meus primeiros anos a economia cresceu 3.2%, agora 3.4% e vou desafiar o especialista porque nós vamos crescer em 2025 e vamos crescer em 2026. Quem quiser apostar, pode jogar. E nós vamos ganhar essa aposta porque o Brasil vai crescer. Nós queremos gerar mais emprego, melhorar o salário, melhorar a distribuição de renda e fazer com que o Brasil se transforme num país exportador de conhecimento e tecnologia e não apenas exportador de commodities.”
Convite aos congressistas
“Faço questão de, toda vez que viajar, convidar o presidente da Câmara, o presidente do Senado. Já convidei muitas vezes o presidente da Suprema Corte, para a gente viajar juntos, para a gente retomar a normalidade democrática do país. O Congresso Nacional tem o poder de legislar, tem o poder de fazer as leis, tem o poder de mudar as coisas que o poder eleitoral manda para o Congresso Nacional e a gente quer que eles participem das viagens para que eles assumam as mesmas responsabilidades que nós assumimos.”
Por que chamou Lira e Pacheco para a viagem
“Eu trouxe os antigos porque, na minha cabeça, rei morto não é rei posto. Rei é sempre rei. Então, você pode ter o segundo rei, o terceiro rei, o quarto rei, mas o primeiro continua rei. Então, eu trouxe eles e fiz questão de que a gente não fizesse nenhuma discussão no avião que a gente poderia fazer em terra.
Eu não seria louco de trazer os companheiros dentro do avião um espaço muito limitado para a gente fazer as discussões, que a gente pode fazer o território brasileiro e lá em Brasília que tem muito que falar. Não seria louco, e não seria prudente. Imagina viajar todo mundo de cara fria no avião, sem se cumprimentar. E ficar esperando um na porta do banheiro já chutando a porta... Essa é uma viagem de muito de muita fraternidade, muita fraternidade. E eu tô muito satisfeito porque é uma experiência rica que nós estamos tendo, uma experiência de compromisso com o Brasil. E quando nós voltamos ao Brasil, nós vamos discutir as coisas que nós temos que discutir. Nós temos projetos importantes para serem votados.”
Paz e amor com o Congresso
“Pode ficar certo que nós vamos viver o melhor momento da relação entre o Congresso Nacional e o Poder Executivo. Uma relação sem subordinação, mas uma relação de parceiros que tem como única preocupação fazer as coisas melhorarem para esse país para o povo brasileiro. (...) Quando eu converso com um deputado, ele não precisa ser meu amigo. Ele não tem que ser do meu partido. Ele pode pensar diferente, ele pode até não gostar de mim. Eu quero saber se ele vai gostar da proposta que nós estamos enviando para melhorar a vida do povo brasileiro. (...) É esse país que eu quero construir. Um país civilizado em relação civilizada, onde todos, mesmo divergindo, possam trabalhar em benefício do país. Essa que é a coisa mais sagrada, é a gente poder se unir em torno do Brasil, que tá faltando muito isso. E nós vamos fazer. Estou convencido que nós vamos fazer.”
Recuperar a alegria do Brasil
“O Brasil, durante todos os meus dois (primeiros) mandatos, era o país mais alegre do mundo e era o povo que tinha mais expectativa do futuro do mundo. Isso mudou e nós temos a obrigação de recuperar essa alegria e esse prazer de viver do povo brasileiro. É isso que eu agradeço a vocês de estarem comigo aqui. Eu espero que essa seja apenas uma das viagens que vocês fizeram juntos, porque daqui pra frente vocês serão convidados pra todas.”
Japão, carne e balança comercial
“Eu não vim aqui no Japão apenas para discutir a questão da carne. A carne é uma coisa muito importante para o Brasil, porque nós somos o maior produtor de carne do mundo, a carne brasileira tem muita qualidade, hoje a carne brasileira compete com qualquer carne de qualquer país do mundo. (...) (...) Essa foi a visita mais importante que eu fiz no Japão, das cinco visitas que eu já fiz no Japão. A primeira dela em 1975, para participar de congresso dos trabalhadores da Toyota. (...) Nós temos uma problema para resolver com os companheiros do Japão, porque em 2011 nós tínhamos fluxo comercial da ordem de 17 bilhões de dólares e esse fluxo caiu para 11 bilhões de dólares. Nós queremos saber onde é que foi o desaparecimento desses 6 bilhões."
Governança global
“Queremos discutir mudança na governança mundial, sobretudo mudança no Conselho de Segurança da ONU para que a gente tenha, no século XXI, uma representação mais forte na geopolítica mundial. Não é possível a gente continuar com o mapa político de 1945, quando mudou muita coisa, muita coisa. Nós temos vários países com mais de 100 milhões de habitantes, como o Japão, que poderia participar do Conselho de Segurança da ONU, o Brasil, o México e tantos outros países que poderiam participar. Achamos que não é possível manter uma governança global que perdeu um pouco de representatividade e muita credibilidade. Hoje os membros do Conselho de Segurança tomam decisão, fazem guerras de forma unilateral sem conversar com ninguém. (...) A mesma ONU que em 1948 teve força para criar o Estado Israel, não tem nenhuma força para criar o Estado Palestino.”
Aquecimento global e COP30
“Tem negacionista que não acredita que o mundo está com problemas. O que nós vimos no ano passado é uma demonstração de que nós estamos perdendo o controle pelo mundo que a gente vive, pelo ar que a gente respira, pela água que a gente bebe e pelo lugar que a gente mora. Esse é fato concreto que não precisa os cientistas falarem. Nós estamos vendo fazer neve no deserto, encher de água no deserto, fazer seca em lugar que chovia, enchente onde não chovia. O mundo está mudando e nós, seres humanos, temos responsabilidade. (...) O Brasil vai fazer a sua parte. (...) Nós vamos fazer a melhor COP já feita desde a primeira COP.”
STF e Jair Bolsonaro
“Seria presunção minha fazer qualquer prognóstico sobre a decisão da Suprema Corte brasileira. Eu acho que o que é correto é que a Suprema Corte está se baseando e se manifestando nos autos do processo, depois de meses e meses de investigação, muito bem feita pela Polícia Federal, pelo Ministério Público e com muita delação de gente importante que está acusando. É visível que o ex-presidente tentou dar golpe no país, é visível por todas as provas que ele tentou contribuir para o meu assassinato, para o assassinato do vice-presidente, para o assassinato do ex-presidente da Justiça Eleitoral Brasileira e todo mundo sabe o que aconteceu nesse país. Não adianta agora ele ficar fazendo bravata, dizendo o que está sendo perseguido. Ele sabe o que ele cometeu. Só ele sabe. Só ele sabe o que ele fez, e ele sabe que não foi correto. Não adianta ficar pedindo anistia antes do julgamento. Quando ele pede anistia antes do julgamento, significa que ele está dizendo que foi culpado.”
Culpado ou inocente?
“Como ele não tem como provar que é inocente, como ele não tem como provar que não tentou dar golpe, ele fica tentando fazer provocação ainda na sociedade brasileira. Eu só espero que a Justiça faça justiça. Se nos autos do processo ele for inocente, que seja inocentado. Se ele for culpado, que seja punido. Eu, inclusive, defendo que ele tenha a presunção de inocência que eu não tive. (...) Espero que a Suprema Corte faça o julgamento que precisa ser feito e que dê uma decisão em função dos fatos do processo.(...) Não é o homem Bolsonaro que está sendo julgado, é o golpe de Estado que está sendo julgado. É a conduta desse cidadão que está sendo julgada. Então eu penso que se ele estiver culpado, ele tem que se contentar com a punição. Isso vale para todos os 213 milhões de habitantes.
Então, ao invés de chorar, caia da realidade e saiba que você cometeu atentado contra a soberania desse país.”
Reação ao tarifaço de Trump
“O presidente Trump, como presidente dos Estados Unidos, tem o direito de tomar decisões dentro dos Estados Unidos. O que ele precisa é medir as consequências dessas decisões. Qual será o efeito dessa decisão para os Estados Unidos? Eu, sinceramente, acho que se ele está pensando que tomar essa decisão de taxar tudo aquilo que os Estados Unidos importam, vai ser prejudicial aos Estados Unidos. Isso vai elevar o preço das coisas e pode levar a uma inflação que ele ainda não está percebendo. (...) Ele taxou o aço brasileiro em 25%. Nós temos duas decisões a fazer. Uma é recorrer na Organização Mundial do Comércio, que nós vamos recorrer. E a outra é a gente sobretaxar os produtos americanos que nós importamos. É colocar em prática a lei da reciprocidade. Não dá pra gente ficar quieto achando que só eles têm razão e que só eles podem taxar. (...)
(...) Ele não só compra para o Brasil. Nós temos uma relação, um fundo comercial de praticamente 87 bilhões de dólares, dos quais eles são superavitários em 7 bilhões de dólares. Então, é um comércio muito equilibrado e que nós vamos tomar as atitudes que nós entendemos que seria bom para o Brasil. Eu acho muito ruim essa taxação, porque ao invés de a gente facilitar o comércio do mundo, a gente está dificultando o comércio do mundo. (...) E esse protecionismo não ajuda nenhum país do mundo.”
Xerife do mundo
“O livre comércio está sendo prejudicado, estou preocupado porque o multilateralismo está sendo derrotado, estou preocupado porque o presidente americano não é xerife do mundo, ele é apenas presidente dos Estados Unidos. Então é importante que ao invés de tomar medidas unilaterais, que ele pudesse conversar com governantes de outros países, com os presidentes, com os políticos de outros países, para tomar essas decisões.”