Embora o ambiente político no Congresso Nacional esteja pouco propício para decisões importantes sobre temas que movem paixões e suscitam debates acalorados, as propostas que buscam estabelecer regras para o ambiente digital, regular as plataformas e definir limites para a liberdade de expressão pairam sobre a pauta e podem ser sacadas a qualquer momento. No outro vértice da Praça dos Três Poderes, porém, em breve o Supremo Tribunal Federal deve avançar sobre o tema. As plataformas acompanham atentamente os movimentos em Brasília, de um lado e de outro, com uma preocupação em especial: elas temem que as novas regras prejudiquem ou até inviabilizem sua atuação no Brasil, seja no front dos conteúdos que publicam, seja na possibilidade de taxação sobre suas operações, que movimentam cifras bilionárias. O governo Lula, como se sabe, trabalha a favor de um modelo com regras mais restrititivas para as big techs.

No início deste ano, quando o Palácio do Planalto entregou sua lista de prioridades aos novos presidentes da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil - AP), pelo menos dois projetos que tocam na questão da regulação das plataformas constaram da lista. Um deles é velho conhecido. O chamado PL das Fake News (PL 2630/20), relatado pelo deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), já foi um trunfo nas mãos de Arthur Lira (PP-AL), antecessor de Motta – sempre que queria postergar a votação de projetos de interesse do Planalto, ele levava o PL para a discussão na forma de requerimento de urgência. Era uma manobra para ganhar tempo e pressionar o Poder Executivo, inclusive para a liberação de verbas de emendas parlamentares.

A proposta, longe de alcançar consenso, estabelece regras para a moderação de conteúdo pelas plataformas, que podem ser penalizadas com multas pesadas caso descumpram as normas. As medidas são inspiradas em regras estabelecidas pela União Europeia. Hoje, pelas normas do Marco Civil da Internet, as big techs não podem ser responsabilizadas por conteúdos de terceiros que elas distribuem em suas plataformas e só se obrigam a excluir conteúdos se houver uma decisão judicial determinando a medida.

Pelo projeto, a responsabilização pode passar a ocorrer caso sejam difundidos textos, áudios e imagens que possam estar enquadrados em crimes previstos Código Penal, como atentado ao Estado Democrático de Direito, instigação ao suicídio ou à automutilação, atos de terrorismo, racismo, violência contra a mulher ou a infância e adolescência, entre outros. Há, porém, um ponto sensível: a moderação pode, afinal, representar risco de censura prévia? Esse é um dos eixos centrais do debate.

As regras previstas no projeto valeriam para provedores de redes sociais, ferramentas de busca e de mensagens instantâneas que ofertem serviços no Brasil e incluem empresas sediadas no exterior cujo número de usuários registrados no país seja superior a 10 milhões. A proposta prevê ainda que as empresas de tecnologia fiquem obrigadas a ter representação legal em território brasileiro, remuneração de conteúdos jornalísticos, equiparação a veículos de comunicação para fins eleitorais e limitação de disparos de posts e mensagens em massa, a exigência de transparência.

No ano passado, Lira colocou em votação um requerimento de urgência para submeter o PL ao plenário e foi derrotado por 249 a 207. Eram necessários 257 para a aprovação e a derrota representou um arranhão no poderio do líder do Centrão, em um sinal explícito de que o assunto, de tão delicado que é, está acima até mesmo das costuras políticas que garantem as maiorias no Congresso. O PL, aliás, encontra resistência não apenas na oposição, tanto na Câmara quanto no Senado, como também em setores da base governista. Parte da esquerda não gosta do texto porque enxerga a possibilidade de que blogs mais alinhados ao PT e a partidos aliados também sejam prejudicados.

Convergência entre esquerda e direita
Curiosamente, outra proposta listada como prioridade pelo Planalto tem origem na oposição. Trata-se do PL 4691/2024, de autoria dos deputados Silas Câmara (Republicanos-AM) e Dani Cunha (União Brasil-RJ). Essa proposta trata da “garantia à livre manifestação do pensamento na internet", veda o anonimato e procura garantir "o livre exercício da atividade econômica na internet, a organização e funcionamento das plataformas, serviços e mercados digitais na internet e dá outras providências". Silas Câmara era coordenador da Frente Parlamentar Evangélica e Dani Cunha é filha de Eduardo Cunha, ex-president da Câmara e inimigo declarado do PT. Mesmo assim, o projeto conta com o apoio do governo. A proposta nasceu em em contraposição ao PL das Fake News, que acabou carimbado por seus críticos como atalho para uma espécie “lei da mordaça”.

O PL 4691 aponta novos deveres para as plataformas, responsabilizando-as por conteúdo gerado por terceiros, o tratamento de riscos sistêmicos e os deveres de transparência e veda o anonimato, destacando que o uso de pseudônimos é permitido, contanto que as empresas conheçam a identidade real do titular do perfil. Essa identidade deve ser mantida em sigilo, exceto por decisão judicial. Em caso de falha na identificação, as plataformas podem ser responsabilizadas civilmente.

Quando o governo decidiu apoiar esse projeto, o ministro da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República era Alexandre Padilha, que tem um perfil mais conciliador que o da atual ocupante do posto, Gleisi Hoffmann, mais afeita ao enfrentamento político-ideológico. Governistas na Câmara não descartam a possibilidade de, no futuro, o Planalto apresentar um texto alternativo, dando um caráter menos liberal ao tema.

O PL está agora na Comissão de Educação da Câmara, presidida pelo deputado Maurício Carvalho (União Brasil-RO), que tem um posicionamento mais ao centro, apesar de ter sido eleito em campanha apoiada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. A tramitação tem caráter conclusivo – ou seja, se aprovada pela comissão, poderá seguir direto para o Senado, sem precisar passar pelo plenário da Câmara, a menos que algum deputado apresente recurso para impedir o envio direto aos senadores.

A batalha do streaming
Outras duas propostas visam regular as companhias de streaming. Uma delas é o PL 2.331/2022, de autoria do senador Nelsinho Trad (PSD/MS), que foi aprovado pelo Senado no final do ano passado e está hoje sob análise da Câmara dos Deputados. Ele prevê a incidência de uma taxa, a Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional) sobre a receita bruta das plataformas e estabelece uma cota mínima de 5% de exibição de conteúdos nacionais. O percentual ainda é motivo de discussão. Há quem reclame do fato de ele estar aquém, por exemplo, da cota de 30% aplicada em boa parte dos países europeus e de 20% sugerida pelo GT-VoD, um grupo de trabalho que funcionou no Ministério da Cultura com a tarefa de propor normas para a oferta dos serviços de vídeos on demand (VoD) no Brasil.

Ainda nesse tema, há outro projeto, o PL 8.889/2017, proposto pelo petista Paulo Teixeira, hoje ministro do Desenvolvimento Agrário, quando era deputado. O relator é o deputado André Figueiredo (PDT-CE), que já apresentou parecer favorável. Esse projeto também prevê a incidência de uma contribuição, com alíquotas que variam entre 1% e 6% sobre a receita bruta das plataformas, dependendo do faturamento e do teor de conteúdo nacional disponibilizado por elas – a alíquota pode chegar a zero no caso de os provedores investirem o valor da alíquota em produções de conteúdo brasileiro, na capacitação de mão de obra local e na implantação de infraestrutura para o mercado nacional.

Essa relação entre a alíquota e a produção nacional beneficia, evidentemente, os serviços de streaming nacionais. O projeto está parado na Câmara. No ano passado, o governo tentou incluí-lo na pauta, mas não obteve sucesso. A oposição alega, também nesse caso, que o texto representa censura e impõe limites à livre circulação de conteúdo nas redes sociais.

O front da inteligência artificial
No Congresso, há ainda propostas que buscam estabelecer regras para a inteligência artificial. No último dia 4, Hugo Motta criou uma comissão especial para analisar o projeto PL 2.338/2023, do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), ex-presidente do Senado, que cria o Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial. O texto foi aprovado pelo Senado no ano passado. Entre os pontos da proposta está a previsão de que grandes empresas de tecnologia deverão informar, já no treinamento de sistemas de IA, quais conteúdos protegidos por direitos autorais foram utilizados. Além disso, autores terão a prerrogativa de vetar o uso de suas obras por esses sistemas, de modo a manter seus direitos intelectuais.

Outro ponto previsto na proposta é a criação de um ambiente experimental pelo órgão regulador de IA, permitindo que empresas negociem diretamente com os autores o valor a ser pago pelo uso de suas criações. Essa negociação poderá ocorrer de forma individual ou coletiva, por meio de associações. Para determinar o valor, deverá ser considerado o poder econômico das empresas, a frequência e quantidade de uso das obras e possíveis impactos concorrenciais entre os conteúdos gerados por inteligência artificial e as criações originais. O uso de obras protegidas será permitido para pesquisa, educação, jornalismo e preservação cultural por instituições, como museus, bibliotecas e arquivos, desde que não haja fins comerciais ou concorrência com a comercialização da obra original.

"Crime de opinião"
Quem acompanha o tema da regulação das plataformas na Congresso também está de olho em uma proposta que, por enquanto, adormece no Legislativo, mas que, a depender dos ventos da discussão, pode voltar à tona. É o PL 3.504/2021, relatado pelo deputado Gustavo Gayer (PL-GO), que estabelece que é legítima toda crítica, “mordaz ou irônica”, inclusive com o uso de adjetivos, a integrantes dos Três Poderes e a serviços públicos prestados à população.

No ano passado, em meio aos embates entre o bilionário Elon Musk, dono do X (ex-Twitter) e o ministro do STF Alexandre de Moraes, políticos bolsonaristas tentaram fazer com que a proposta fosse votada na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara, então presidida pela deputada Caroline De Toni (PL-SC). A proposta só não foi votada porque o relator se ausentou da reunião. Neste momento, as chances de ela avançar são baixas. Juntado a um projeto de autoria do deputado Kim Kataguiri (União Brasil-SP) que pretende acabar com o chamado "crime de opinião", o PL precisa passar pelas comissões de Cultura e de Comunicações e pela CCJ antes de seguir para o Senado.

Enquanto isso, no STF...
No Supremo Tribunal Federal, as chances de surgirem novas medidas de regulação das plataformas no curto prazo são maiores. A corte está julgando duas ações que questionam a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que exige ordem judicial prévia e específica de exclusão de conteúdos para a responsabilização civil de provedores, websites e gestores de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros.

Entre ministros do tribunal e também no governo Lula, a expectativa é que o julgamento possa resultar em medidas concretas e imediatas para regular das atividades das plataformas e das redes sociais no país. O julgamento teve início no plenário ainda no ano passado. Os relatores dos casos são os ministros Dias Toffoli e Luiz Fux. Os dois já votaram, bem como o presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso. O ministro André Mendonça pediu vista em dezembro e tem prazo até o fim de abril para apresentar seu voto. Em seguida, Barroso deve pautar a retomada do julgamento. A decisão é aguardada para este semestre.

Os votos apresentados até agora indicam que, na prática, o tribunal deve endurecer o tratamento conferido às big techs. Dias Toffoli propôs que as plataformas promovam o autocontrole e retirem do ar conteúdo de caráter mentiroso, ofensivo ou criminoso publicado pelos usuários mediante simples notificação, sem a necessidade de determinação judicial. Ele também defende que conteúdos mais graves – acistas, com incentivo ao suicídio, à violência sexual, ao tráfico de pessoas ou à divulgação de fatos notoriamente inverídicos – sejam excluídos das plataformas sem a necessidade de notificação prévia.

Fux concordou com Toffoli. Para ele, conteúdos ilícitos ou ofensivos devem ser removidos assim que as plataformas forem notificadas. O ministro acrescentou que as próprias plataformas devem ser responsáveis por monitorar a publicação de conteúdos mais graves e sejam obrigadas a retirá-los do ar sem necessidade de notificação prévia.

Barroso, por sua vez, apresentou um voto um pouco mais brando para as plataformas. Para ele, em casos de crimes contra a honra, a remoção do conteúdo só deve ocorrer após ordem judicial. Segundo ele, ainda que se alegue a existência de injúria, calúnia ou difamação, a postagem deve permanecer, sob pena de violação à liberdade de expressão. Nos bastidores, a aposta é que André Mendonça se manifeste no sentido de manter a legislação da forma como está hoje – ou seja, com mais liberdade para as big techs. Nesta terça-feira, 15, o PlatôBR promove em Brasília, com apoio do Google, um debate com algumas das principais autoridades no tema.