ROMA - Em conversas informais com padres que acompanham essa fase pré-conclave, uma postagem virou assunto entre alguns cardeais, inclusive dos brasileiros. Tratava-se de uma publicação com a frase "vote em branco" estampada pela foto do cardeal nigeriano Robert Sarah. Um claro exemplo de propagação do racismo por meio das redes sociais. "Não tinha nada de humor, só preconceito mesmo", disse o padre Valdir Cândido de Morais, reitor do Colégio Pio Brasileiro, onde os sete cardeais brasileiros estão hospedados à espera do conclave que começa no próximo dia 7 de maio.
O padre Valdir viu a publicação no WhatsApp de um colega e não propagou a postagem. Mas entendeu a preocupação do conclave com as novas mídias, além da questão da inteligência artificial, que tem sido discutida pelos cardeais nas congregações gerais.
Desde que os olhos do mundo se voltaram para os cardeais em Roma, por causa da morte do papa Francisco, os memes se disseminaram com força total e, apesar das publicações discriminatórias como a que se referia ao africano, há postagem que divertem cardeais, bispos, padres e seminaristas, interligados em grupos. A questão da inteligência artificial, o mundo ligado em redes, as novas formas de comunicação e as transformações da sociedade em consequência dessas tecnologias são assunto do conclave e serão abordados pelo novo papa. Esse é um consenso entre os que vão votar para eleger o sucessor de Francisco.
"O tema da inteligência artificial está posto. Os cardeais nem sabem muito como funciona, mas já existe uma reflexão sobre esse ponto na Igreja. Como se portar? Além disso, a dinâmica digital é algo que impressiona os cardeais. Eles ficam impressionados com a velocidade em que os memes são produzidos", disse o padre Valdir, que tem acompanhado diariamente a rotina dos brasileiros.
Ao mesmo tempo em que se aponta a crueldade da disseminação dos preconceitos, a Igreja também repensa como utilizar essas tecnologias para a comunicação dela própria e construir uma ética humana. O assunto permeia o conclave. Encontrar um novo papa que seja sensível a esse desafio é um ponto que tem sido considerado por cardeais que vão se isolar do mundo para eleger o novo papa, a partir do próximo dia 7 de maio.
A questão está nas explanações feitas pelos cardeais nas congregações gerais que antecedem o conclave, nas expectativas confessadas, nos sermões, inclusive nas cerimônia litúrgica de luto na Basílica de Santa Maria Maggiore, em Roma, onde o Francisco foi sepultado.
O cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano e um dos mais cotados para ser o próximo Sumo Pontífice, falou sobre esse assunto na missa de luto que celebrou no domingo, 7, logo após a abertura das visitações ao túmulo do papa Francisco, demonstrando preocupação da Igreja em ser referência ética e, ao mesmo tempo, enfrentar o desafio de se comunicar nos novos tempos. "Diante dos muitos desafios que estais chamados a enfrentar – recordo, por exemplo, o da tecnologia e da inteligência artificial, que caracteriza particularmente a nossa época", citou, aos fiéis, o cardeal que conduzirá o conclave. "Nunca esqueçais de alimentar a vossa vida com a verdadeira esperança, que tem o rosto de Jesus Cristo ressuscitado e vivo na sua Igreja", pediu.
"Sermão da Montanha"
"A Igreja sempre foi pioneira na comunicação. Desde a época de Jesus. Jesus já usava técnica de comunicação no evangelho. Por exemplo: ele subia em uma barca, mandava a barca se afastar da margem, para que o vento do mar levasse a sua voz e mais gente pudesse ouvir. Ou então ele ia para algum lugar mais alto, como no Sermão da Montanha. Ele sabia que, do alto, a voz ressoa mais fácil", apontou o padre Carlos Augusto Azevedo da Silva, da Arquidiocese do Rio de Janeiro, doutorando em Direito Canônico na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, acompanha os cardeais brasileiros nesse período pré-conclave.
Ao falar sobre a complexidade do mundo atual, o cardeal caboverdiano Arlindo Furtado refere-se também às novas formas de comunicação. "A minha esperança é de que a Igreja, sendo conduzida pelo Espírito Santo, saiba encontrar a pessoa mais preparada para a complexidade do mundo atual e também em relação à complexidade interna atual", disse. "Mas o certo é que a Igreja tem que ser o meu ponto de referência em humanidade. Tem que ser referência nas relações humanas, no cuidado uns com os outros", indicou.
"Igreja não é marketing"
O cardeal Dom Raymundo Damasceno, bispo emérito de Aparecida e o único cardeal brasileiro que não vai votar no conclave devido à idade, admite que a Igreja está assustada com a inteligência artificial. "As pessoas ficam um pouco assustadas com o potencial que está aí na mão do homem. Mas o importante para a Igreja é utilizar os meios de comunicação, e os mais modernos, para o anúncio do Evangelho. Eu acho sempre que, se Jesus tivesse vindo hoje, São Paulo, os apóstolos estariam usando os meios de comunicação para poder divulgar o Evangelho. Mas se esqueceram de que tudo isso são meios, são instrumentos. O mais importante é o testemunho de cada um, porque é o testemunho que convence e o testemunho que arrasta as pessoas", disse em entrevista ao PlatôBR.
Ele alerta sobre a necessidade de que o novo papa seja sensível ao fato de que a Igreja precisa ter um trabalho robusto, "um testemunho", e não reduza a sua atividade a uma questão de marketing digital. "O que atrai não é a palavra. Como diz o padre Vieira, a palavra voa, o que arrasta é o exemplo. Ninguém se convence com discursos, mas com testemunhos de vida. É bem parecido com a situação que a gente vive hoje na política. Não basta promessas, não bastam discursos, é preciso fazer alguma coisa, é preciso atuar, fazer alguma coisa dentro do compromisso com o bem comum, com um mundo melhor, com a paz, com o diálogo, com a construção de um mundo mais fraterno, mais humano", afirmou o cardeal.
Documento
Em janeiro deste ano, a Igreja, ainda sob a direção do papa Francisco, documentou orientações importantes sobre o assunto. O texto ainda não foi traduzido para o português ou para outras línguas além do italiano, mas já embasa uma visão antropológica e filosófica sobre a inteligência artificial para o clero. Observando os termos bélicos usados, a Igreja sabe estar diante de uma guerra para a propagação de sua "verdade". "Ao contrário de muitas outras criações humanas, a IA pode ser treinada na produção do gênio humano e assim gerar novos “artefatos” com um nível de velocidade e habilidade que, com frequência, iguala ou supera as capacidades humanas, como gerar textos ou imagens que são indistinguíveis das composições humanas, despertando assim preocupação sobre sua possível influência na crescente crise da verdade no debate público", diz o documento.
"Além disso, como essa tecnologia é projetada para aprender e adotar determinadas decisões de forma autônoma, adaptando-se a novas situações e trazendo soluções imprevistas aos seus programadores, surgem problemas substanciais de responsabilidade ética e segurança, com repercussões mais amplas para toda a sociedade. Esta nova situação obriga a humanidade a questionar a sua identidade e a sua identidade no mundo", aponta o texto.
Perigo
Doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Lateranense do Vaticano, o padre Hugo Cavalcante diz que o existe em construção sobre esse tema dentro da Igreja hoje está no documento, e explica o temor em relação a falsificações e discursos das autoridades eclesiásticas. "Existe esse documento sobre a inteligência artificial que mostra a preocupação da Igreja", observa.
Na prática, como hoje é possível a reprodução de uma voz como se fosse a pessoa falando, é possível se colocar um cardeal pregando uma coisa que não tem nada a ver com a Igreja. É claro que é possível se detectar essas falsificações, mas o estrago em comunicação já estará feito. É uma preocupação lícita e ,até o momento, é esse documento que orienta", disse o padre, que também lembrou as orientações do papa Francisco: "Ele dizia que o perigo não é a inteligência artificial, mas aqueles que não têm inteligência e se deixam levar por ela", apontou, em conversa com o PlatôBR.