CFM contra a ciência, a Constituição e o STF
Em nova resolução, o Conselho Federal de Medicina decidiu contribuir com sua dose de preconceito contra pessoas trans, retardando terapias e tratamentos.
Para o CFM, apenas ao chegar à maioridade seria possível às pessoas trans acessar tratamentos condizentes com a identidade de gênero, ainda que reversíveis (como a administração de bloqueadores hormonais para crianças trans e a administração de hormônios sexuais para induzir características secundárias condizentes com a identidade de gênero) e apenas aos 21 anos seria possível realizar a cirurgia de afirmação de gênero, que comporta efeito esterilizador.
Há precedentes no tribunal para derrubar a resolução do CFM.
Em outubro de 2024, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o Ministério da Saúde deveria adotar todas as providências para garantir o acesso a pessoas transsexuais e travestis a políticas de saúde. Isso incluía, entre outros pontos, a possibilidade de agendamento de consultas e de exames de todas as especialidades, independentemente do registro do sexo biológico, de forma a impedir que o “sistema” exigisse informações que causassem qualquer constrangimento ou barreira de acesso de pessoas trans aos serviços de saúde.
A decisão foi tomada em ação que denunciava discriminação contra pessoas trans nos serviços de saúde, onde homens trans não conseguiam sequer agendar consultas para exames ginecológicos e mulheres trans tampouco conseguiam acesso a serviços de saúde na especialidade de urologia e Proctologia, por exemplo.
Esse cenário de discriminação persistia mesmo com decisão do tribunal, adotada em 2018, que reconhecia às pessoas trans o direito de alteração de seu registro civil sem necessidade de prévia cirurgia de transgenitalização ou de outros tratamentos hormonais. Ou seja, ainda que o Supremo tenha afirmado o direito à identidade de gênero como parte fundamental da personalidade humana e do direito à igualdade, na prática esse direito era obstado por “sistemas” que vinculavam o sexo biológico ao nome e, por conseguinte, ao tratamento de saúde permitido.
A decisão foi contundente em afirmar acesso igualitário a ações e serviços de saúde, como algo decorrente do reconhecimento de igual dignidade conferido às pessoas trans.
Para além do reconhecimento de igualdade de direitos às pessoas trans em inúmeros julgados, recentemente, o ministro Zanin reconheceu que condicionar os procedimentos de esterilização voluntária das mulheres a uma idade superior a 18 anos seria instituir um regime de discriminação e de tutela, violando o direito à autonomia e à liberdade individual.
Entretanto, mesmo assim, o Conselho Federal de Medicina entendeu por bem aprovar regras que, uma vez mais, desigualam as condições para exercício de direitos entre pessoas cisgênero (que se identificam com o gênero atribuído em razão do sexo biológico) e pessoas trans.
As consequências da discriminação são conhecidas: o país é campeão no número de assassinatos de pessoas trans, os noticiários estão cheios de casos de agressões e torturas. Crianças trans sofrem em suas famílias, nas escolas e no ambiente público.
Tal como fez na pandemia, quando estava contaminado por ideologias e alérgico à ciência, o CFM agora resolveu instituir um regime de sub-autonomia para as pessoas trans. Viola, com isso, a ciência, a Constituição e inúmeros precedentes do STF.
Eloísa Machado é coordenadora do projeto Supremo em Pauta, da Fundação Getúlio Vargas (FGV)
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