CIDADE DO VATICANO - Um dos oito cardeais brasileiros, dom Raymundo Damasceno, arcebispo emérito de Aparecida, não terá direito a voto no conclave que elegerá o sucessor do papa Francisco. O motivo: a idade. As leis vaticanas determinam que, dentre todos os integrantes do cardinalato, só podem votar e serem votados aqueles com menos de 80 anos. Como tem 88, dom Raymundo, que foi nomeado cardeal por Bento XVI e participou do conclave que escolheu Francisco, desta vez é, digamos, um espectador de luxo. Mesmo assim, está em Roma e todas as manhãs vai ao Vaticano e participa das chamadas congregações gerais, as reuniões em que o Colégio de Cardeais discute os rumos da Igreja e que podem ser decisivas para o resultado da votação.

Mineiro de uma pequena cidade chamada Capela Nova, o cardeal começou sua trajetória na Igreja Católica bem cedo, aos 10 anos, em uma instituição marista do Rio de Janeiro. Pisou em Roma pela primeira vez quando ainda era seminarista. Aos 31 anos, tornou-se padre. Por quase duas décadas, foi pároco em Brasília, onde se tornou bispo em 1986. Em 2004, deixou a capital federal com destino a Aparecida, onde foi arcebispo por 13 anos, até tornar-se emérito. Ele também foi presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e do Celam (Conselho Episcopal Latino-americano).

Nesta terça, dom Raymundo recebeu o PlatôBR para uma entrevista. Apontou avanços na Igreja com o papa Francisco e disse esperar que o novo papa siga esse caminho. "O papa Francisco foi um papa de grande acolhimento. Ele acolheu todas as pessoas dentro da Igreja e o respeito das pessoas na vida social. O papa tem que ser esse instrumento no mundo de hoje. A Igreja tem que ser esse instrumento de paz", disse.

O cardeal não arrisca um palpite, nem mesmo para defender que o Brasil tenha, pela primeira vez, uma papa. "Ninguém está excluído de ser votado e de votar. São sete cardeais". "O conclave é uma caixinha de surpresas", emenda, mostrando-se aberto ao que define como "surpresas de Deus". "Devemos estar sempre abertos para as surpresas de Deus e as surpresas de Deus são sempre agradáveis porque ele cuida de todos, ama a todos e quer sempre o bem de cada um de nós e quer o bem da Igreja."

Dom Raymundo defende que a Igreja se aproprie das novas tecnologias de informação para transmitir o Evangelho, embora admita que a inteligência artificial assusta. "As pessoas ficam um pouco assustadas com a inteligência artificial e o potencial que está aí na mão do homem. O importante para a Igreja é utilizar os meios de comunicação, os mais modernos, para pregar o Evangelho. Se São Pedro estivesse vivo hoje, São Paulo, os apóstolos, eles estariam usando os meios de comunicação para divulgar o Evangelho, mas sem esquecer que tudo isso são meios, são instrumentos. O mais importante é o testemunho de cada um. É isso que convence, que arrasta as pessoas."

A seguir, os principais trechos da entrevista. 

Eleger o substituto do papa Francisco é uma tarefa que vai envolver quais sentimentos?
É grande o número de cardeais que vão participar do conclave, e que vão, portanto, votar no futuro papa. É um grupo bastante variado em termos de origem. São cardeais dos mais diversos países, das mais diversas regiões do nosso globo. Creio que dois não virão por motivo de saúde. A eleição do papa sempre é uma grande surpresa. Como se diz aqui em Roma, 'quem entra papa, sai cardeal do conclave'. Além disso, 80% dos cardeais eleitores foram criados pelo papa Francisco. Essas reuniões chamadas de congregações gerais são importantes para os cardeais se conhecerem nessa convivência de alguns dias, das manifestações de cada um. Também nessas congregações gerais a gente vai delineando, digamos assim, nessa conversa, nessas intervenções. Os cardeais, nesse processo, vão chegando cada um a uma conclusão, na sua consciência diante de Deus e na sua própria consciência, para eleger aquele que julgar mais oportuno, mais adequado para os tempos de hoje, para a Igreja e para o mundo.

Quais são os temas importantes hoje que a Igreja precisa discutir neste conclave?
O primeiro critério realmente é a missão da própria Igreja. A Igreja existe para evangelizar. Para anunciar e testemunhar Jesus Cristo no mundo de hoje. Ele é o caminho, a verdade e a vida. Essa é a primeira condição. Todos nós devemos estar empenhados, como cardeais, como bispos, como padres ou como leigos, em realizar a missão da Igreja, que é o anúncio de Jesus Cristo no mundo de hoje, para os anseios de cada um. O segundo ponto é a importância do diálogo. Nós vivemos um mundo conturbado, cheio de conflitos em várias partes, guerras. Falam em cerca de trinta conflitos não muito conhecidos, não muito divulgados pela mídia, que se concentra mais na questão da Palestina e Israel, na questão europeia, da Ucrânia e da Rússia. Mas há muitos outros conflitos regionais intensos que têm causado muito sofrimento, muita dor, muitas mortes. Então, o papa deve ser alguém que, como o papa Francisco, procura todos os meios para promover a paz.

Já que o senhor falou em diversidade, o papa Francisco acolheu demandas de grupos minoritários, como a comunidade LGBTQIA+, por exemplo. A Igreja hoje pode retroceder nesse ponto?
Nesse caminho do diálogo, não. Nesse caminhar juntos, criando comunhão, na diversidade, acolhendo as pessoas nas suas diversidades, respeitando as pessoas, não (vai retroceder). Eu acho que o papel da Igreja é ser um instrumento de comunhão das pessoas com Deus e da comunhão entre si também, criando uma sociedade de paz, uma sociedade de respeito mútuo, uma sociedade em que as pessoas saibam conviver uns com os outros, nas diferenças próprias de cada um, nas culturas, na formação. Eu acho que isso é fundamental. A Igreja tem que ser instrumento de união, instrumento de comunhão no mundo de hoje, dividido, tão diversificado, num mundo egoísta, num mundo de conflitos.

O senhor acredita que os cardeais que vão votar têm condição de manter esse diálogo e o acolhimento de pessoas que não eram aceitas pela Igreja? O senhor tem sentido isso, conversando com os cardeais que vão votar?
Sim, se percebe. Cada um pela sua experiência. A Igreja realmente tem que anunciar a paz. Como diz Jesus no Evangelho: 'Bem-aventurados os que lutam pela paz, trabalham pela paz, promovem a paz entre eles'.

O senhor acha que está na hora de haver um papa brasileiro? Isso pode acontecer?
É muito difícil dizer. Eu acho que o conclave é uma caixinha de surpresas. E temos que acreditar na ação também do Espírito Santo. O Espírito Santo vai agindo nesse processo de discernimento e vai conduzindo esse processo. Não de uma maneira visível, evidentemente.

O Brasil tem cardeais capazes de exercer a função de papa?
Ninguém está excluído de ser votado e de votar. São sete cardeais. Devemos estar sempre abertos para as surpresas de Deus e as surpresas de Deus são sempre agradáveis porque ele cuida de todos, ama a todos e quer sempre o bem de cada um de nós, e quer o bem da Igreja. É difícil dizer se vai ser um brasileiro, se vai ser um europeu, se vai ser um asiático ou um africano. Eu às vezes prefiro nem dizer. Devemos estar sempre abertos para as surpresas de Deus, mesmo que não correspondam aos nossos desejos. São sempre surpresas agradáveis.

Como o senhor está enxergando a discussão sobre inteligência artificial e outras tecnologias da informação? É um ponto que a Igreja precisa refletir, discutir como se comportar diante desse mundo de informação e tecnologia?
Eu não sou especialista, digamos, em linguagem artificial. As pessoas ficam um pouco assustadas com o potencial que está aí na mão do homem. Mas o importante para a Igreja é utilizar os meios de comunicação, e os mais modernos, para o anúncio do Evangelho. Eu acho sempre que, se Jesus tivesse vindo hoje, São Paulo, os apóstolos estariam usando os meios de comunicação para poder divulgar o Evangelho. Mas se esqueceram de que tudo isso são meios, são instrumentos. O mais importante é o testemunho de cada um, porque é o testemunho que convence e o testemunho que arrasta as pessoas.