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Livre cambismo e protecionismo

As crenças nas virtudes da globalização sofrem os contratempos provocados pelas reações protecionistas que irrompem nos Estados Unidos e na Europa. Americanos e europeus proclamam reiteradamente os compromissos com o livre-comércio.

Um olhar mais atento para os desdobramentos históricos dos momentos livre-cambistas e protecionistas poderia perturbar as percepções binárias. Em sua obsessão positivista, essas percepções binárias indagam: livre-comércio ou protecionismo? Como dizem meus amigos das verdes arquibancadas do Allianz Parque: “não é assim que a banda toca”. Provoquei um dos amigos que cultivam saberes musicais. Perguntei a respeito das analogias possíveis entre os acordes de autores reconhecidos e a convivência conflituosa entre protecionismo e livre cambismo. Ele sugeriu Stravinsky, A Sagração da Primavera.

No livro Antecedentes da Tormenta comentei os escritos do economista americano Michael Hudson no seu livro clássico Trade, Development and Foreign Debt. Hudson faz uma avaliação histórica e crítica das teorias do comércio e das finanças internacionais, desde os mercantilistas até os dias de hoje, com parada obrigatória em Adam Smith e David Ricardo. Ele divide as teorias em dois grandes grupos: 1) aquelas que definem o sistema econômico internacional a partir de relações hierárquicas entre os Estados Nacionais, suas moedas, seus sistemas financeiros e suas empresas; e, 2) as que advogam a existência de um espaço homogêneo e “competitivo”, um campo aberto para o desenvolvimento dos negócios e das trocas.

Para Hudson, as palavras “protecionista” e “livre-cambista” são etiquetas ideológicas que ocultam as razões de fundo das divergências. O capitalismo realmente existente conta uma história mais ambígua do que aquela narrada pelos fundamentalistas – de um lado e de outro – a respeito do desenvolvimento das relações econômicas internacionais.

Protecionismo e livre cambismo convivem como cães e gatos. Brigam o tempo todo, mas são inseparáveis. A boa história econômica ensina que os Estados Unidos têm uma longa e persistente tradição de praticas protecionistas. Os primeiros passos da caminhada protecionista estão recomendados no Relatório sobre as Manufaturas de Alexandre Hamilton, publicado em 1791.

Hamilton, então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, fez a crítica das teorias fisiocráticas que postulavam a superioridade da agricultura. Desenvolveu uma brilhante argumentação em defesa da manufatura como fonte da ampliação da divisão do trabalho, ganhos de produtividade e de maior progresso da própria agricultura.

Paul Bairoch, Douglas North, Charles Kindleberger e Carlo Cippola, registram a persistência das práticas protecionistas americanas ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX, até o fim da Segunda Guerra. O aumento brutal das tarifas promovido pelo Smoot and Hawley Act em 1930, inaugurou uma sombria temporada de competição protecionista.

No movimento de desviar o desemprego para o território do outro, seguiram-se as desvalorizações competitivas. Iniciado com a saída da Inglaterra do padrão-ouro em 1931, o jogo de estrepar o vizinho teve sequência na desvinculação do ouro anunciada por Roosevelt em 1933.

Essas reações provocaram a contração brutal dos fluxos de comércio e suscitaram tensões nos mercados financeiros. Tais forças negativas propagavam-se livremente, sem qualquer capacidade de coordenação por parte dos governos. Assim, a economia global mergulhou numa espiral deflacionária que atingiu indistintamente os preços dos bens e dos ativos.

Pérfidas considerações sobre o celebrado liberalismo da Inglaterra pedem passagem. Na segunda metade do século XIX, depois de suspender, em 1841, a proibição de exportar máquinas e artesãos, revogar, nos idos de 1846, a proteção à sua agricultura protegida pela Corn Law, o liberal-mercantilismo da pérfida Albion comandou a expansão do comércio e das finanças internacionais.

Já dominado pelos interesses financeiros da City, o liberal-mercantilismo da Inglaterra hegemônica criou as condições para as políticas intencionais, diga-se protecionistas, de industrialização dos retardatários europeus e dos Estados Unidos. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é a mesma coisa, ensinam as cartilhas da dialética elementar para positivistas teimosos.

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autor de vários livros, entre eles “Valor e Capitalismo” e “Os Antecedentes da Tormenta”, e ocupou cargos públicos como o de secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e o de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo

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