Grandes fortunas: o gesto político de Lula e o desafio da tributação progressiva
As declarações recentes do presidente Lula à proposta de taxação das grandes fortunas, que endossa a necessidade de que os mais ricos contribuam de forma proporcional à sua renda e patrimônio, vão além de um aceno. Representam a reabilitação de uma ideia que, embora prevista na Constituição desde 1988, sempre foi tratada como tabu no debate fiscal brasileiro.
A proposta tem raízes antigas no ideário da esquerda, mas foi sistematicamente postergada por uma combinação de fatores, desde o poder de veto das elites econômicas, à fragmentação do Congresso, o medo de fuga de capitais e a crença (muitas vezes internalizada pelo próprio campo progressista) de que o Brasil ainda não estaria “maduro” o suficiente para encarar uma reforma tributária de caráter redistributivo. Lula, durante seus dois primeiros mandatos, governou sob a lógica da conciliação, buscando aliar crescimento econômico, aumento do consumo e inclusão social, sem alterar substancialmente a regressividade da carga tributária. Agora o tom é outro.
O gesto do presidente deve ser interpretado como uma tentativa de responder a múltiplos imperativos simultâneos. Em primeiro lugar, há um cálculo político evidente. As pesquisas de opinião indicam apoio majoritário da população à medida. Em um país onde a concentração de renda está entre as mais altas do mundo, a percepção de que os super-ricos escapam do fisco enquanto o grosso da arrecadação recai sobre o consumo de bens essenciais e sobre o salário do trabalhador gera indignação. Apropriar-se dessa insatisfação popular e transformá-la em agenda política é uma forma de fortalecer a legitimidade do governo junto às bases sociais mais vulneráveis, sobretudo em um contexto de tensão fiscal e limites para novos investimentos sociais.
Em segundo lugar, há um elemento de reposicionamento ideológico. A retórica adotada pelo presidente, que invoca a justiça tributária como parte de uma “luta civilizatória”, recoloca a política econômica no centro do embate distributivo. Ao contrário da lógica tecnocrática que dominou a política fiscal brasileira nos últimos anos (baseada em metas, regras e “âncoras”), a ênfase agora recai sobre quem paga e quem se beneficia do Estado. A simples evocação do termo “grandes fortunas” já rompe com o vocabulário usual das reformas “neutras” ou “técnicas”, devolvendo à política tributária seu caráter essencialmente político.
Por fim, há uma dimensão estratégica. A proposta de taxar os super-ricos coloca-se em um momento em que parte significativa da elite econômica global começa a discutir os limites do modelo atual. Iniciativas como o imposto global mínimo sobre multinacionais, defendido por organismos multilaterais e países do G20, mostram que a janela de viabilidade política para a tributação progressiva está se abrindo (mesmo que com muitas resistências). A adesão do Brasil a esse movimento internacional pode ser uma oportunidade tanto para corrigir distorções internas quanto para reposicionar o país como ator influente nas discussões sobre justiça fiscal no século XXI.
Mas o desafio de transformar essa sinalização política em política pública é imenso. O Congresso Nacional, mesmo após as eleições de 2022, continua dominado por interesses refratários a qualquer redistribuição de poder econômico. Os setores mais ricos da sociedade brasileira dispõem de ampla capacidade de lobby, controle de narrativas e mecanismos jurídicos para evitar mudanças substanciais. Soma-se a isso o fato de que parte considerável da classe média tende a ser mobilizada contra a proposta, sob o receio de que “sobrará para ela”, receio esse que, embora alimentado pela desinformação, precisa ser enfrentado com argumentos claros e pedagógicos.
As reflexões trazidas por Pedro Nery, em “Extremos: Um mapa para entender as desigualdades no Brasil”, nos ajudam a entender que a construção de uma política de taxação das grandes fortunas exige três condições básicas. A primeira é precisão técnica. É preciso desenhar um modelo que atinja efetivamente o topo da pirâmide (os 0,1% mais ricos) sem provocar efeitos colaterais perversos, como evasão em larga escala, dupla tributação ou insegurança jurídica. Há experiências internacionais que podem servir de referência, como os casos da França (que inclusive revogou seu imposto sobre o patrimônio por problemas de eficácia) e da Noruega (que mantém um modelo funcional e aceito socialmente).
A segunda condição é o enfrentamento político. O governo terá de montar uma frente ampla (que inclua partidos, movimentos sociais, setores progressistas da academia e da imprensa) para sustentar a proposta diante do bombardeio previsível dos setores privilegiados. Isso significa não apenas negociar no Congresso, mas também disputar “corações e mentes” na sociedade.
Mostrar, com dados e exemplos reais, que a medida não é uma cruzada ideológica, mas uma política racional, moderna e justa.
A terceira condição é o timing. O momento político é este. Adiar a discussão significa desperdiçar capital político e permitir que essa pauta seja desidratada ou capturada por outras forças. O governo conta hoje com a autoridade de um presidente popular, a legitimidade conferida pelas urnas e o respaldo de uma população que sente, no dia-a-dia, o peso de um sistema injusto. Empurrar a proposta com a barriga é repetir o erro histórico de tratar a justiça fiscal como tema periférico.
Levar essa agenda adiante é uma questão de viabilidade de longo prazo. O pacto social brasileiro, fraturado por décadas de desigualdade e por um Estado que cobra mais de quem tem menos, precisa, urgentemente, ser reequilibrado. A taxação das grandes fortunas, se bem formulada e bem comunicada, pode ser um passo decisivo nessa direção. Não é uma questão de “punir quem enriqueceu”. Trata-se de afirmar um princípio elementar: quem mais se beneficia da estabilidade econômica e da proteção institucional deve contribuir proporcionalmente para sua manutenção.
Lula entendeu isso. E nós, sociedade brasileira, estamos prontos para essa discussão. O Congresso, hoje mais do que nunca, será o terreno da disputa. Mas a hora é agora. Porque, como ensina a política, há ideias cujo tempo chega, e quando isso acontece, ou se avança ou se perde uma geração.
Fillipi Nascimento é cientista Social. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper
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