Médicos que põem política acima da ciência sofrem de “déficit de formação”. Corrupção na saúde é pena de morte. As opiniões são da médica Ludhmila Hajjar, uma das principais cardiologistas do país. Em entrevista ao canal Amado Mundo (youtube.com/@amadomundo), em seu consultório no Hospital Vila Nova Star, onde comanda a UTI e a cardiologia, Hajjar falou ainda sobre a proposta de criar um “hospital inteligente” no SUS, inspirada na China e Índia. Também comentou sobre sua relação com a presidente Dilma Rousseff, que é sua paciente — outros poderosos da política e do showbiz que atende são Gilmar Mendes, Arthur Lira e Marisa Monte. E revelou bastidores do convite que recebeu de Bolsonaro para chefiar o Ministério da Saúde durante o auge da pandemia.
Na USP você é a primeira mulher a dar aula na disciplina de emergências clínicas. Nas residências as mulheres são maioria.
Estamos vivendo uma transformação. Ganhamos menos, chegamos menos a posições de liderança, sofremos assédio. É desafiador. E é o que nos torna ainda mais importantes, porque, sendo minoria e conseguindo chegar a posições relevantes, temos a obrigação de abrir caminho para essa geração de mulheres modernas que faz parte da nossa sociedade.
O que é um hospital inteligente e qual proposta apresentada ao governo federal?
É um hospital que usa inteligência artificial em todos os seus aspectos, como machine learning e redes neurais, para trazer acessibilidade, interoperabilidade e conectividade ao funcionamento do Sistema de Saúde. A ideia é evitar desperdícios, fazer entregas mais eficientes e diagnósticos mais precoces. Em São Paulo tem um sistema de saúde pública integrado e uma central de regulação de vagas. Um paciente com suspeita de derrame cerebral numa região periférica pode demorar mais de 12 horas até chegar a um hospital de alta complexidade. A busca por vaga é manual. Aciona-se o SAMU, a ambulância mais próxima é enviada, o paciente chega ao hospital, leva 30 minutos para registro e início do diagnóstico. A China e a Índia colocaram inteligência nesse sistema. O paciente aciona o sistema de emergência via smartphone. Uma ambulância 5G integrada para na porta da casa, encontra o hospital mais próximo, o tratamento começa na própria ambulância, o caso é discutido com o hospital, o paciente chega, faz tomografia, já está no sistema e um neurologista o espera.
Como podemos destravar esse nó na saúde pública [demora nos agendamentos para pacientes em estado grave]?
Temos que trabalhar com três elementos. Primeiro, se investe em saúde. Sem dinheiro, não se faz transformação. Segundo, gestão. O sistema foi descentralizado: governo federal, estadual e municípios. Existe corrupção. É preciso dar foco à gestão com atenção. Terceiro, tecnologia. Como manejar um sistema que atende, em média, 150 milhões de vidas? É preciso prontuário único, eficiência nas entregas, metas, e acabar com a corrupção. Corrupção na saúde é pena de morte. Você mata um doente quando desvia uma emenda que era para fazer um hospital, para abrir um leito de UTI.
Você conversou sobre isso com a Dilma?
Eu falei para ela: “presidenta, a senhora não acha que a gente devia tirar a ‘integralidade’ do sistema? E deixar escrito aquilo que a gente entrega?” Ela falou: “minha filha, jamais. Isso seria um retrocesso”. Eu não estou certa de que ela esteja com a razão nesse sentido, porque eu não sei se, à luz da medicina atual, altamente tecnológica e cara, com um país que não é sustentável do ponto de vista de autossuficiência, nós conseguimos manter isso. Produzimos poucos medicamentos de alto custo. Temos poucas tecnologias em saúde. Nosso complexo industrial ficou sem verbas, sem investimento em muitos anos. Eu não sei se dá tempo de recuperar.
O governo Bolsonaro te convidou para ser ministra da Saúde durante a pandemia, como foi isso?
Ao longo da pandemia, coordenei UTIs no HC da USP, que ficaram destinadas à COVID, participei do processo de enfrentamento à pandemia. Pesquisei a cloroquina. Ele me viu numa reunião de cientistas chamados para discutir novas terapias em Brasília. Dali, ele me reconheceu, conversou um pouco, ficou uma memória. E ele sabia que eu estava estudando cloroquina. Um belo dia, ele vê uma reportagem de uma senhora de 92 anos que teve alta da Rede D’or após ter tido uma COVID grave. Os jornais chamaram a atenção. Ele me convidou por telefone. Eu pedi para ir a Brasília para conversar antes de qualquer coisa. Ficou claro que não seria possível. Foi uma experiência que passou. E, felizmente, não deu certo. Eu tenho certeza que não teria dado certo.
Quantos brasileiros você estima que morreram por causa da cloroquina?
Acho difícil dar uma resposta objetiva. Nós perdemos 700 mil pessoas. O tratamento não foi errado apenas pela cloroquina, mas foi errada a condução da pandemia. Teve o negacionismo, o anti-isolamento, a falta de recursos para os hospitais, a vacina atrasada, a apologia a não vacinar, o uso maluco de azitromicina, cloroquina e ivermectina, o não olhar para terapias que estavam vindo. Se eu tiver que fazer um chute, acho que daria para a gente salvar pelo menos a metade dessas pessoas.
Como você avalia médicos que disseminam opiniões políticas acima da ciência?
É déficit de formação. Só pode ser muito incapaz um indivíduo que deixa a ciência e começa a politicar em medicina. É leiguice misturada com maldade, com calhordagem, com charlatanismo. O que eu acho é que aquele momento político fez renascer fundamentos podres nessas pessoas, sabe? Porque você usar a capacidade que tem como médico, o poder que tem de influenciar vidas, para politizar um tratamento, para fazer uma coisa que pode gerar um mal, isso é gente incompetente, maldosa, e que cometeu crime.
E o Ministério da Saúde no governo Lula?
O governo Lula pegou uma saúde destroçada, que veio do governo anterior. Você tinha terra arrasada, negacionismo, falta de recursos, os programas foram destruídos: Programa Nacional de Imunização, secretarias de doenças sexualmente transmissíveis, programa de AIDS. Eles estão no processo de reconstrução, é fato. Eu tenho participado de muitas ações do governo, não que eu seja ligada a esse governo, mas pelo meu papel na universidade. Eu participei do grupo de transição e, como professora da USP, estou sempre chamada, participando. E viver na democracia é melhor do que viver no obscurantismo, negacionismo e medo de exprimir a sua liberdade.