O ex-primeiro-ministro de Portugal e ex-presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, afirmou que se sentiu profundamente decepcionado com a posição do presidente Lula e do Brasil diante da guerra na Ucrânia. Para ele, a neutralidade brasileira representa um afastamento histórico do compromisso do país com o direito internacional e o multilateralismo. 

A opinião parte de quem já negociou com Vladimir Putin em mais de 20 ocasiões: Durão considera que o Brasil deveria ter adotado uma postura mais firme em defesa dos princípios que tradicionalmente sustentou nas Nações Unidas.

Em entrevista ao programa Lisboa Connection, do canal de YouTube Amado Mundo (https://www.youtube.com/@amadomundo), Durão Barroso defendeu a urgência do rearmamento europeu diante das ameaças de Vladimir Putin, ressaltou o potencial do acordo Mercosul-União Europeia e a importância de uma diplomacia mais pragmática entre Brasil e Europa.

Leia os principais trechos da entrevista.

O senhor ainda acredita que o acordo União Europeia-Mercosul sai?
Acredito e desejo muito. Trabalha-se para esse acordo há mais de 25 anos, e eu mesmo estive na origem dele, ainda como ministro das Relações Exteriores de Portugal. É um bom acordo para a Europa, para o Mercosul e para o Brasil. 

Neste momento houve uma convergência de vontades. Eu espero que isso agora seja ultrapassado, porque é bom para a Europa e para o Mercosul. Eu até diria que é bom para o comércio mundial. Quando vemos agora o renascer de um certo protecionismo, seria um excelente exemplo que a União Europeia e o Mercosul finalmente conseguissem pôr em prática esse acordo.

O senhor vê espaço para uma nova diplomacia entre Brasil e Europa, mais voltada a investimentos e resultados concretos?
Eu vejo. Vejo e desejo também isso. Porque, como sabe, nós aqui em Portugal sempre fomos, digamos, o partido brasileiro dentro da União Europeia. Defendemos naturalmente, por uma cumplicidade histórica e cultural, uma ligação muito próxima entre a Europa e o Brasil. E há grandes oportunidades aí, dos dois lados. Com investimentos mútuos, na parte da tecnologia, na parte da educação. Para além do comércio, claro, de bens e serviços, há aqui grandes hipóteses.

Donald Trump atrapalha ou também traz oportunidades para essa relação?
É preciso parar de apenas criticar o Trump e fazer o dever de casa. Não é por causa de Donald Trump, nem de nenhum presidente americano, que a Europa ainda não aprofundou mais o seu mercado interno. A Europa precisa fazer isso, criar uma união de mercado de capitais, investir em tecnologia e construir sua própria defesa. Há, sim, dificuldades com Trump, mas também uma oportunidade: deixar de ser aquilo que temos chamado de adolescente geopolítico e assumir-se também, não apenas como um espaço econômico, mas também um espaço político.

Lula e Durão Barroso na 4ª Cúpula Brasil-União Europeia, em 2010

Lula e Durão Barroso na 4ª Cúpula Brasil-União Europeia, em 2010  Foto: Wilson Dias/ABr

O senhor estava bastante otimista com o terceiro governo Lula e possibilidades do Brasil. Continua otimista?
Para ser muito sincero, há muita crítica. Mas eu continuo a pensar que o potencial do Brasil é imenso. Há coisas fantásticas que se passam no Brasil, do agronegócio às universidades, da tecnologia à aeronáutica.

O Brasil tem imensa coisa que funciona sem o governo. Às vezes, até funciona melhor sem o governo. O Brasil é isso. É uma sociedade muito forte e democrática, graças, aliás, a uma imprensa livre. Portanto, eu tenho confiança no futuro do Brasil e continuo a esperar que algumas dificuldades sejam ultrapassadas.

De onde vem sua relação tão forte com o Brasil?
Meu pai nasceu no Rio, era luso-brasileiro. Cresci com o Brasil dentro de casa: lia o Cruzeiro, a Manchete, acompanhava o futebol e o Carnaval. Sempre fui fascinado. Depois, fui muitas vezes ao Brasil, tenho família no Rio, conheço várias regiões. É uma paixão antiga e profunda, pessoal e política.

Como é negociar com o Vladimir Putin, com quem o senhor já esteve tantas vezes?
É difícil. Digo isso com pena, porque eu tenho um grande respeito pela Rússia, que é um país de civilização europeia, com uma cultura extraordinária e com uma história notável. Nós não podemos nunca esquecer que foi a Rússia que resistiu ao Nazismo.

O presidente Putin que eu conheço é muito difícil a negociar, porque muitas vezes não faz o que diz. Lamento dizer, mas é verdade. Tive vários casos em que ele me dizia uma coisa e estava a fazer exatamente a contrária. E depois vai adiando. Tem aqueles truques todos, aquela astúcia. Má fé na negociação.

O Brasil devia ter uma posição mais voltada para a Europa, nesse caso?
Eu devo dizer com muita sinceridade, eu fiquei muito desiludido com a posição do presidente Lula e do Brasil na questão da Rússia, da Ucrânia. Porque o Brasil tem sido um país que tem defendido sempre o direito internacional e o multilateralismo.

O Brasil pode ter um papel importante ao unir o mundo, e não ao dividir. É um país democrático, desenvolvido, com raízes ocidentais. O discurso do sul global, em muitos casos, é movido por ressentimento. E ressentimento não é política. O Brasil pode estar nos BRICS e também no G7 alargado. É uma ponte possível entre diferentes mundos.

O quão urgente é a Europa se rearmar?
É urgente. Eu sou pacifista, um dos dias mais felizes da minha vida foi quando, em nome da União Europeia, recebi o Prêmio Nobel da Paz em 2012. Mas como diz aquele velho adágio latino, se queres a paz, prepara-te para a guerra. A melhor forma de evitarmos uma agressão da Rússia é estarmos preparados.

Os europeus têm de fazer mais para a sua defesa, mas defesa não é para atacar. A Europa não quer invadir a Rússia. Infelizmente, passou pela cabeça do senhor Putin invadir a Ucrânia, mas a Aliança Atlântica é uma aliança de defesa.