Entre a impunidade e a radicalização: a angústia social do julgamento de Bolsonaro
O sentimento de ansiedade que atravessa o país em torno do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro se explica pela forma como a própria sociedade brasileira projeta nesse veredito suas fraturas, seus medos e suas expectativas. Esse é um daqueles momentos em que a decisão judicial se torna símbolo de algo maior, a saber, a disputa sobre os limites da democracia, o peso da memória recente e a possibilidade de reposicionar o futuro político do Brasil.
Se Bolsonaro for absolvido, grande parte da população experimentará a sensação de impotência diante de um sistema que, para muitos, falhou em dar resposta institucional às violações cometidas no exercício do poder. Para esses setores, a absolvição se tornará a reafirmação da impunidade que assola a história nacional, desde os crimes da ditadura até os episódios de corrupção e violência política mais recentes. O sentimento que predomina, nesse cenário, é de frustração e desalento, pois o pacto democrático se mostrará seletivo, ou seja, capaz de punir alguns atores, mas disposto a poupar outros em nome da estabilidade ou do cálculo político.
Por outro lado, se Bolsonaro for condenado, a angústia social não desaparecerá. Para seus apoiadores mais fiéis, a condenação será interpretada como perseguição política, a prova de que as instituições foram “aparelhadas” para retirar de cena uma liderança popular. A narrativa de vitimização, já bastante difundida, ganhará um novo fôlego, podendo, inclusive, ser convertida em capital político para o bolsonarismo, que tenderá a reorganizar-se em torno da figura do “injustiçado”. Mesmo para os setores que não se identificam diretamente com Bolsonaro, persiste a preocupação com a radicalização social que um veredito condenatório pode deflagrar, reativando redes de mobilização e acirrando o clima de polarização.
Em ambos os cenários, a sociedade brasileira vive sob o peso da incerteza. Não se trata apenas do desfecho formal do julgamento, mas do que ele desencadeia em termos de legitimidade das instituições e de estabilidade política. O Brasil tende a experimentar uma intensificação do mal-estar social, seja pela percepção de impunidade, seja pela possibilidade de convulsão política. É como se a nação estivesse diante de uma encruzilhada sem saídas confortáveis, onde qualquer decisão gera ressentimentos.
Essa angústia coletiva tem também um componente histórico. A memória dos julgamentos emblemáticos no Brasil costuma estar associada a frustrações. Processos que não avançaram, investigações que prescreveram, promessas de responsabilização que nunca se concretizaram. Ao mesmo tempo, quando condenações ocorrem, elas raramente produzem a pacificação esperada, pois o sistema político rapidamente reacomoda os interesses em jogo. Assim, o julgamento de Bolsonaro é lido como parte de uma tradição em que a Justiça e a política se entrelaçam de modo tenso, incapazes de oferecer respostas que sejam aceitas por amplos setores sociais.
Uma parte da sociedade aguarda a condenação como reparação simbólica pelos ataques às instituições e à democracia. Outra parte teme que a condenação produza mais instabilidade do que solução. Entre esses polos, há milhões de brasileiros que não se alinham diretamente a nenhum dos lados, mas que veem no julgamento um espelho das dificuldades de um país que parece não conseguir escapar de crises sucessivas.
Fillipi Nascimento é cientista Social. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper
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