Márcio Thomaz Bastos (1935-2014) foi uma das personalidades mais marcantes da advocacia brasileira. Durante o primeiro mandato de Lula, em 2002, foi ministro da Justiça e deixou um legado com a criação do Conselho Nacional de Justiça e as reformas da Polícia Federal e do sistema judiciário. Sua habilidade como articulador político também o tornou peça central da tentativa do governo de se salvar da areia movediça do Mensalão.
Como criminalista, Bastos atuou em casos emblemáticos defendendo poderosos da política, do mundo empresarial, perseguidos políticos e sindicalistas do ABC durante a ditadura militar.
Para reconstruir a carreira emblemática de Márcio Thomaz Bastos, que morreu em 2014, aos 79 anos, o Papo Amado, do canal Amado Mundo, conversou com três de seus discípulos: Maíra Salomi, advogada e mestre em direito penal; Pierpaolo Bottini, professor e advogado criminalista; e Beto Vasconcelos, professor e mestre em direito.
A seguir, os principais trechos da entrevista. Assista à íntegra em vídeo ao fim do texto.
A face mais famosa de Márcio como ministro foi a reestruturação da Polícia Federal. Depois, ele próprio criticou alguns excessos. Qual balanço ele fazia desse trabalho?
Bottini: Ele entendeu que um dos instrumentos mais relevantes para combater o crime organizado era a PF. Por isso, em uma operação ousada e politicamente interessante, pediu a Lula que aumentasse o orçamento para abrir concursos e equipar a organização. Ele conseguiu e criou um corpo autônomo e independente. No entanto, uma corporação que ganha relevância e autonomia acaba cometendo excessos. Já no tempo em que ele era ministro isso foi controlado por uma portaria. Hoje, a PF é o que é por causa do Márcio Thomaz Bastos, e acho que esse crédito, muitas vezes, não é dado a ele.
Para críticos, os erros que o Ministério Público cometeria na Lava Jato tinham origem na autonomia que Márcio deu. Como ele via a atuação do MP na operação?
Maíra: Aquele início da Lava Jato não é o que hoje a gente sabe. Agora vemos com muita clareza onde foram os erros. Nós advogamos por empreiteiras da operação e acompanhamos uma crescente dessas autoridades, seja MP, seja juiz, cometendo equívocos e ninguém conseguindo frear. Desde o início, o doutor Márcio se preocupava em detectar os erros e abusos porque havia uma aparente ilegalidade.
Qual foi sua importância no primeiro governo Lula?
Vasconcelos: Além da reestruturação da PF, com gabinetes especiais e a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, por exemplo, ele criou o sistema penitenciário federal e estabeleceu o programa de desarmamento. Também reorganiza as demarcações de terras indígenas e conclui a da maior e mais relevante, a Raposa da Serra do Sol. Ele faz a reforma infraconstitucional do Judiciário, mesmo com resistência, e constrói todas essas agendas com uma capacidade única de articulação. Na escolha dos ministros do STF, ele sempre esteve no processo decisório. Às vezes definindo junto ao presidente e, mais à frente, colaborando com a presidenta Dilma na construção de opções.
Maíra, como foi sua última viagem com o Márcio?
Maíra: Fomos a Miami a uma reunião do Caso FIFA, em que [o empresário] J. Hawilla era nosso cliente. Ao longo daquele dia, a gente percebeu que ele não estava conseguindo falar. No voo de volta ao Brasil, ele passou mal. No dia seguinte, o Augusto Arruda Botelho foi fazer uma reunião com ele, viu como estava mal e o arrastou para o hospital. Deu uma semana e recebi a ligação da família dizendo que ele havia falecido. Eu tinha visitado ele, e, de fato, estava mal, mas para quem o conhecia, era inacreditável. Achávamos que iria viver por mais muitos anos.
Qual foi a importância dele na crise do Mensalão?
Bottini: A principal característica dele era a serenidade. Muitas vezes o mundo estava caindo, mas ele conseguia te acalmar. No primeiro momento, quando ele criou a Secretaria da Reforma do Judiciário, foi um ato muito ousado e teve uma reação em cadeia. Com muita habilidade no diálogo, ele desamarrou as resistências no Senado. Mais do que isso, respeitava e era muito respeitado pela imprensa. Mesmo com os ataques ao governo, sempre dizia que ela não devia ser justa, e sim livre. Ele tinha respeito dos jornalistas, parlamentares e da comunidade jurídica. Isso fazia com que conseguisse ver as crises de uma forma muito ampla.
O que você aprendeu com ele no dia a dia?
Maíra: Tudo. Geralmente, o criminalista está formado na litigância, no contencioso, coisa que o Márcio fazia muito bem. Ele fazia júri como ninguém e era combativo na defesa, mas tinha esse “plus” da capacidade de negociar, ceder, conseguir conquistar o interlocutor e de ter respeito perante esquerda, direita, Ministério Público, juiz. Isso fez com que todos os discípulos dele aprendessem a advogar de uma forma muito diferenciada. Ele se destaca mesmo como advogado dos advogados.
Vasconcelos: Ele tinha várias frases muito marcantes. Dizia “se nós estamos em um buraco, a primeira coisa: paremos de cavar”, para conduzir o processo de reorganização de uma crise. O Mensalão foi assim. Imagina, uma crise estrutural do governo envolvendo os principais nomes de comando e ele tinha que acalmar as diversas pessoas que queriam rapidamente tomar iniciativas. Ninguém sabia lidar com aquilo.
E os cadernos?
Bottini: O Márcio dizia que tomava nota num diário de tudo o que acontecia na vida dele, discussões políticas, articulações, bastidores. E realmente, várias vezes você via ele anotando. Ele contava que teria guardado isso num cofre e que, depois de morrer, pediria para alguém da confiança dele publicar. Quando ele faleceu, chegamos a conversar com a família e nunca ninguém achou nada. Reza a lenda que ainda estão com alguém de confiança em alguma casa-forte ou banco no exterior, e quando der o prazo que ele estabeleceu, vão aparecer.
O Márcio defendeu mais de uma pessoa que cometeu crimes atrozes, por exemplo, Roger Abdelmassih e Pimenta Neves. Que tipo de cliente ele não pegava?
Maíra: Ao longo dos anos em que a gente trabalhou junto, eu não vi ele declinar nenhum caso pela matéria ou pelo cliente. Pelo contrário, eu acho que quanto mais difícil era a causa, quanto mais aquele réu era afastado da sociedade, sofria com o processo penal, com a mídia em cima, mais ele queria defender. Ele tinha essa atração pelo direito de defesa. Tínhamos casos de crimes sexuais, tráfico de drogas, assim como a gente tinha corrupção, financeiro, sonegação. Ele tratava igual todos os processos e todos os clientes.