O historiador Daniel Aarão Reis, da Universidade Federal Fluminense (UFF), avalia que o julgamento da tentativa do golpe, com as condenações de Jair Bolsonaro e dos demais sete réus, é triplamente importante do ponto de vista da História: por desacreditar golpistas do passado, condenar conspiradores do presente e inibir rupturas democráticas no futuro. Aarão Reis pondera, no entanto, que a condenação de Jair Bolsonaro não significa o fim do bolsonarismo.

Em entrevista à coluna, o historiador também refletiu sobre as relações entre a ditadura militar e a tentativa de golpe, falou sobre a Lei da Anistia de 1979 e as articulações do bolsonarismo para anistiar os golpistas condenados no Supremo.

Leia os principais trechos da entrevista.

Qual é a importância histórica do julgamento da tentativa de golpe?
Eu diria que é triplamente importante do ponto de vista histórico. Primeiro porque o julgamento, ao condenar de forma tão contundente os acusados, desacreditou conspiradores que, no passado, empreenderam esse tipo de ação. Em segundo lugar, porque condenou os conspiradores atuais, que é um marco histórico na medida em que isso nunca tinha acontecido no Brasil. E, em terceiro lugar, contribuiu a condenação para dissuadir futuros golpes. Eu me pergunto se os golpistas de 64, se houvesse um passado de condenações a esse tipo de atividade, teriam se dedicado com tanta desenvoltura ao golpe.

Havia um sentimento de impunidade?
Houve um diálogo em determinado momento, entre dois conspiradores, em que um dizia para o outro: e se isso tudo não der certo? E o outro respondia: não vai acontecer nada. Então, essa consciência absoluta da impunidade era algo compartilhado pelos conspiradores, porque, ao longo da história da República, quando os golpes tinham sucesso, viravam ditaduras. Como foi o caso da ditadura do Estado Novo, instaurada em 37, e, mais uma vez, em 64. Agora, os outros todos, os golpes que não deram certo, foram anistiados sempre, antes que os conspiradores ou os autores tivessem sido sequer julgados.

E a pauta da anistia que está sendo articulada no Congresso?
Embora as condenações tenham sido uma contrapartida, de modo nenhum pode se esperar que elas desativem as forças de extrema direita, que têm crescido no Brasil. Além disso, o autoritarismo é um fenômeno que não se limita ao Brasil. Portanto, essa condenação foi um momento importante a ser registrado, mas eu advirto que não sinto nenhuma euforia. As tendências de extrema-direita não vão ser vencidas — como nunca uma ideia foi vencida a não ser por outra ideia — por condenações ou fuzilamentos ou violências. É preciso que os democratas envidem muitos esforços, muita tenacidade, muita inteligência para vencê-la. Eu espero que, contra esse movimento pela anistia, que está muito forte na Câmara dos Deputados, haja uma resistência na sociedade, ou, no limite, que isso não passe no Senado. Ou que seja vetado pelo governo federal ou declarado inconstitucional pelo STF.

Que ligação o senhor vê entre ditadura militar e essa tentativa de golpe?
Alguns líderes, a começar pelo próprio Bolsonaro, não se furtaram a se declarar partidários da ditadura. Ele disse expressamente que lamentava o fato de a ditadura não ter matado 30 mil brasileiros, em vez de apenas torturado. Por outro lado, também elogiou publicamente um torturador notório, como era o coronel Brilhante Ustra. A adesão desses conspiradores à ditadura é óbvia. O que eu lamento, e isso não está sendo devidamente discutido, é o fato de que alguns dos conspiradores [Mauro Cid, Anderson Torres e Alexandre Ramagem] era criança quando foi aprovada a Constituição de 1988. Ou seja, são filhos da Nova República.

Como se explica isso?
É preciso discutir o nível de educação que está sendo distribuído no nosso país e, particularmente, das academias militares, dos cursos de Estado Maior, do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Nossas Forças Armadas estão ainda imbuídas numa formação que era muito forte no tempo da Guerra Fria. Que as Forças Armadas têm que caçar os inimigos internos, ao invés de defender a integridade das nossas fronteiras em relação a ameaças externas. É um panorama muito preocupante. Porque há um processo educacional que está cultivando esse tipo de ódio, esse tipo de perspectiva golpista, antidemocrática e violenta. Se isso não for alterado, nós vamos continuar fabricando esse tipo de pessoas.

Se não tivesse havido a lei da anistia de 1979, a história hoje seria diferente?
A lei da anistia, a meu ver, representou um momento da transição da ditadura para a democracia no Brasil, foi um processo de negociação. O fato é que, no conjunto, a transição foi uma transição negociada. E, nesse contexto, é que você tem que situar a lei da anistia de 79. Ela é a expressão da correlação de forças que havia então. O lamentável é que, muito depois, quando essa correlação de forças já tinha se alterado, os tribunais continuavam sendo complacentes com a tortura como política de Estado. Em 79, não há como imaginar que a realidade poderia ser diversa. Foi uma anistia lamentável, porque, evidentemente, de um lado, você anistiava pessoas que tinham sido identificadas, muitas torturadas, presas, condenadas, e os torturadores foram anistiados sem sequer terem tido seus nomes enunciados, sem sequer terem sido julgados.

O ex-presidente Jair Bolsonaro

Na sua opinião, o bolsonarismo vai crescer ou vai murchar com essa condenação?
Acho que o bolsonarismo está murchando. Isso é fato inegável. Ele já levou muito mais de 100 mil pessoas às ruas. E agora, no dia Sete de Setembro, as duas maiores manifestações em São Paulo e no Rio agruparam apenas 80 mil pessoas. É um número razoável. Mas muito abaixo do que eles esperavam. Agora, realmente, a condenação muito dura e a prisão sempre são processos que costumam funcionar a favor do preso, porque a figura do martírio, do homem injustiçado, são referências que, de modo geral, podem contribuir. O bolsonarismo, mesmo declinando, ainda continua sendo uma força considerável e não pode ser subestimada.

Em sua opinião, Tarcísio será o candidato da direita?
Ele está se mostrando decidido a isso, não é? A meu ver, é um erro de avaliação dele. Ele está sendo, de certo modo, empurrado pelo presidente do PSD, que quer, por sua vez, se candidatar ao governo. Ou pelo prefeito de São Paulo, que também quer. Eu acho que ele comete um erro de avaliação, porque esse momento é um momento muito difícil, porque as pressões dos Estados Unidos sobre o Brasil vão aumentar; e o governo Lula está encarnando a resistência nacional. E o nacionalismo é uma tradição que, embora declinante, continua muito forte no Brasil. E sob o efeito de pressões crescentes dos Estados Unidos, é inevitável que o nacionalismo cresça.

O senhor está dizendo que essa pressão dos Estados Unidos, que deve aumentar com a condenação, tem favorecido Lula? Ele cresceu cinco pontos nesse último mês.
Claro, cresce porque foi um presente que o Trump deu a ele. Isso acontece muito na história: certos inimigos, com suas ações impensadas, acabam presenteando seus adversários com programas e com propostas que vão ajudá-los. Nesse caso, a pressão dos Estados Unidos, a prepotência do Trump, que é cego em relação às possibilidades, às contradições que as suas políticas suscitam. A tendência é haver uma polarização crescente com os Estados Unidos e isso beneficiar, certamente, o governo Lula e as esquerdas.