Criadora de tiras e reflexões afiadas, Laerte Coutinho é uma das maiores referências no humor gráfico brasileiro e voz essencial na leitura crítica do país. Aos 74 anos, a chargista, caricaturista e cartunista que impactou gerações com seu traço diz, no entanto, ter se livrado da obrigação de ser engraçada: “o humor não é só risadas o tempo todo”.
“Eu não sei exatamente o que está acontecendo com o humor. Às vezes fico perdida e começo a experimentar”, disse em uma conversa franca com o Papo Amado, programa de entrevistas do canal Amado Mundo, no YouTube.
Laerte também revelou detalhes do seu processo criativo, lembrou conselhos que moldaram sua carreira, refletiu sobre o envelhecer — com o qual, confessou, não lida bem — e comentou o julgamento de Jair Bolsonaro e militares por tentativa de golpe de Estado.
A seguir, os principais trechos da entrevista. Assista à íntegra em vídeo ao final do texto.
Como começou a desenhar?
Como toda criança, meus irmãos e irmãs desenhavam. Uma hora o desenho começou a se tornar mais significativo, pessoal e importante. Mas eu não entendia como profissão.
Quando virou essa chave?
Eu estava na faculdade com a ideia de fazer música. Mas eu desenhava o tempo todo e um professor me convenceu, ao dizer que era a minha expressão principal. Pediu que eu visse a área como algo mais sério. Eu perguntei se seria uma música ruim e ele disse que não necessariamente, mas desenhando eu seria feliz. Entendi o que ele queria dizer. Acho que foi um dos grandes conselhos que tive na vida.
Quando você criou seu primeiro personagem?
Eu me vi forçada quando o desenho de humor passou a ser uma profissão para mim. A alternativa para publicar era a tira diária para jornais, que envolve necessariamente criar personagens. Uma das conjunturas em que eu mais me sentia à vontade era a ideia de um condomínio, com um síndico e um zelador como eixos principais e uma fauna de moradores. Foi como comecei em 1988.
Você consegue olhar para trás e ver seu método de criação de personagens?
Eu não crio personagens com facilidade, tenho problemas com eles. Cheguei a essa conclusão depois de mais de 50 anos de profissão. Gosto de criar histórias e situações, mas personagens são uma dificuldade. Tenho grande admiração por quem consegue, porque significa mergulhar numa pessoa imaginária a ponto de ela ter consistência.
Hoje, como é sua relação com a música?
Estranha. Há uns anos parei de escutar música. Até escuto e entendo, mas não ativo os neuroreceptores para sentir como uma impressão afetiva. Isso não acontece mais.
Como você vê a relação do brasileiro com o humor?
O humor não é uma coisa só, ele se instala nas sociedades de maneiras muito variadas. O humor para o brasileiro hoje certamente é diferente do que era no Império. Eu não sei exatamente o que está acontecendo com o humor. Às vezes fico perdida e começo a experimentar. No passado, eu recebia respostas muito esporadicamente. Hoje, não: você publica e, dali a cinco segundos, alguém comenta.
Isso paralisa?
Por um lado, sim. Por outro, impulsiona. Paralisa porque a gente se sente vigiada, impulsiona porque nos sentimos objeto de interesse. Fico um pouco insegura, mas sigo trabalhando.
É cansativo ter que ser engraçada?
Eu me livrei disso. O humor não é só risadas o tempo todo. Existem formas que geram risadas internas ou reações subjetivas. Nos últimos 20 anos, parei de usar personagens e escrever piadas como obrigação. Ainda crio situações engraçadas, mas não como regra absoluta.
Foi difícil fazer humor no governo Bolsonaro?
Para mim, não. Às vezes, retratar a coisa como ela é já é suficiente. Quando faço charges políticas é diferente de fazer tiras. Nas tiras, crio situações fictícias e poéticas. Na charge, faço comentários sobre a realidade objetiva e faço representações simbólicas das pessoas. O Bolsonaro que coloco nas charges não é o Bolsonaro, é uma representação da violência, estupidez e truculência, traços que ele, por acaso, tem.
O que o julgamento de Bolsonaro te diz como brasileira?
É um evento histórico. Principalmente pelo fato dos militares, que tentaram e perpetraram golpes repetidamente no Brasil, nunca terem sido questionados, julgados ou sequer criticados. Não acredito muito em prisão para corruptos, o que importa é a derrota de um pensamento golpista e militar. Deviam obrigar a ressarcir prejuízos. O importante é a derrota política, o ostracismo.
Você já refletiu sobre a perenidade da sua obra?
Tenho pensado muito na morte porque estou chegando numa fase em que ela fica mais palpável. Minha mãe tem 99 anos, não esperamos que dure até 120, mas que tenha uma vida confortável. E quanto tempo eu vou durar? Qual o sentido?
O que quer que sua obra e a Laerte, enquanto artista, sejam quando você não estiver mais aqui?
Não espero que vá muito além do que já está. Obras de humor tendem a ser consumidas pelo tempo, pelas circunstâncias e costumes. Tenho medo da vida em si: perder trabalho, subsistência e o que tenho, que não é muito.
O que mais te instiga hoje?
Quero entender o momento. Me sinto perdida em quase tudo. O que antes lidava com segurança, hoje não sei bem. Isso torna cada charge política um problema, pois preciso enfrentar essa falta de certeza. Na ditadura, tudo era um pacote claro: Banco Central, junta militar, governo, ministérios. Hoje temos um governo híbrido, sem unidade.
Tem relação com a fase da vida em que você está?
Sim. Não sei lidar com a velhice. Reluto em entregar o jogo, cansada, insegura. Há belezas na velhice, mas também desconfortos que exigem adaptação e não são fáceis. Você perde prazer e liberdade, autonomia que tinha.
Você já foi muito perguntada sobre gênero. Tem reflexões novas?
Gênero? O que é gênero? (risos) Tenho questionamentos sobre as táticas do movimento. Por exemplo, questão das letras que definem o movimento. Acho um exagero tanta letra. As pessoas se sentem intimidadas. Parece um léxico que só diz respeito a quem está dentro, não é uma coisa que amplia, que fala com a sociedade. Fala mal com a sociedade.
Você perdeu um filho com 22 anos em 2005 e já disse que achou ser o fim de tudo. Como foi essa jornada?
Muita coisa morreu. Algumas não sei se morreram naquela hora ou não. Na análise, me perguntei se meu distanciamento da música e dos prazeres tinha relação com esse luto. Passei por transformações, coisas que já vinha arquitetando, mas o momento me deu um pontapé inicial. Mudei a forma de trabalhar o humor e já estava experimentando minha transgeneridade, usando roupas e tentando me entender como pessoa trans.
Três casamentos, três filhos, muitos momentos apaixonantes. O que aprendeu sobre o amor?
Atualmente, não consigo pensar em amor e afetos, nem lidar com relacionamentos. Me considero uma pessoa solitária, sozinha. Não tenho mais vontade.