Depois da condenação de Jair Bolsonaro a 27 anos e 3 meses de prisão pela prática de crimes tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do estado democrático de direito, organização criminosa, dano e deterioração ao patrimônio tombado, a instauração de inquérito para apurar os crimes relacionados à pandemia é a mais relevante notícia envolvendo a atuação do sistema de justiça na reparação do estrago causado pelo governo de Jair Bolsonaro.

A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal julgou os crimes contra a democracia, envolvendo diferentes núcleos, com dezenas de réus e sessões de julgamento, estabelecendo a responsabilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro e da cúpula de seu governo por atos contra a democracia, inclusive de militares de alta patente.

Foi um feito histórico e sem precedentes. E ainda assim foi pouco. Para grande parte dos brasileiros, Bolsonaro foi o maior responsável pela gravidade dos efeitos da Covid-19 no país. E a maior parte dos brasileiros está certa.

Conforme revelou o estudo conduzido pela Cepedisa, o governo de Jair Bolsonaro desenvolveu uma estratégia de disseminação deliberada do vírus da Covid-19, articulando discursos, omitindo-se no dever de agir, endossando medidas ineficazes.

Essa também foi a conclusão da CPI da Pandemia, realizada pelo Senado Federal durante o ano de 2021. Após dezenas de depoimentos e centenas de documentos, a Comissão Parlamentar de Inquérito concluiu que Jair Bolsonaro e a cúpula de seu governo foram responsáveis por implementar uma política de disseminação do vírus da Covid-19, violando a lei penal e os direitos fundamentais do povo brasileiro.

As conclusões da CPI da Pandemia foram enviadas, à época, para a Procuradoria-Geral da República, que decidiu não aprofundar as investigações. Para a PGR daquele momento, ao invés de incitação ao não uso de máscaras, Bolsonaro e seus asseclas apenas “manifestaram suas opiniões e ideias sobre as medidas de combate à pandemia”.

Ao invés de incitar a invasão de hospitais, que afirmavam estar vazios por ser a Covid-19 uma farsa, apenas incentivavam “a participação e fiscalização popular acerca do devido uso das significativas verbas públicas federais direcionadas às ações de saúde no contexto da pandemia”. Nem uma defesa particular, bem remunerada, por advogados renomados, faria melhor.

A instauração do inquérito permitirá o avanço das investigações e suprirá uma enorme lacuna de responsabilização que permanece aberta no país. Afinal, se falamos de propagação intencional da pandemia, como política do estado, falamos em mortes e adoecimentos evitáveis. Em centenas de milhares de adoecimentos e mortes evitáveis para as quais deve haver um culpado.

O Tribunal Permanente dos Povos, realizado em 2022, julgou Jair Bolsonaro pelos crimes cometidos na pandemia. O tribunal simbólico, de opinião, agiu quando o sistema de justiça se omitiu. Ouviu depoimentos de familiares dos mortos, de povos indígenas quase dizimados, de profissionais da saúde – sobretudo mulheres negras – relegados à própria sorte; condenou Jair Bolsonaro por crimes contra a humanidade, ao propagar intencionalmente a pandemia e disseminar discurso de ódio.

Passados 5 anos do início da pandemia, 4 anos da conclusão da CPI da Pandemia, 3 anos do Tribunal Permanente dos Povos e acumuladas 716.626 mortes, é chegada a hora da verdade e da justiça.

Eloísa Machado é coordenadora do projeto Supremo em Pauta, da Fundação Getúlio Vargas (FGV)