O governo Lula terá que decidir em breve qual caminho vai trilhar ao definir as novas regras do PAT, o Programa de Alimentação do Trabalhador.
Criado por meio de uma lei federal em 1976 para acabar com a subnutrição que assolava quem trabalhava nas fábricas e nos comércios do país, o programa passou por uma forte evolução nos últimos 50 anos. A primeira versão garantiu a instalação dos refeitórios nas empresas. Depois, foram criadas as companhias de tíquetes em papel que poderiam ser distribuídos aos trabalhadores, para que eles pudessem pagar por refeições em restaurantes, lanchonetes, supermercados e outros estabelecimentos.
Em um terceiro momento, os tíquetes de papel foram transformados em cartões de benefício e as compras de refeições e alimentos passaram a ser pagas nas maquininhas de cartão. Agora, uma nova reforma do programa é discutida e até sua extinção foi posta sobre a mesa, por meio de uma proposta levada ao governo pelo setor supermercadista. Por essa ideia, o benefício seria pago diretamente na conta dos trabalhadores, o que daria margem para outros tipos de gastos que não necessariamente com alimentação.
Se levada em frente, a proposta colocaria o governo Lula diante do risco de choque direto com a agenda historicamente assumida pelo presidente, um ex-sindicalista que chegou ao poder defendendo os direitos dos trabalhadores. No cenário atual, até em razão do possível desalinhamento com o caráter social do auxílio, a ideia apresentada pelo setor supermercadista dificilmente avançará, e a tendência é que o governo faça mudanças no programa, mas sem extinguir a intermediação das empresas de benefícios que administram os tíquetes.
Reforma em andamento
O Ministério da Fazenda e o Ministério do Trabalho acertam os últimos detalhes para publicar, ainda em outubro, um decreto presidencial destinado a regulamentar o VR (vale-refeição) e o VA (vale-alimentação), que são a última evolução feita no PAT para facilitar a compra de alimentos pelos trabalhadores.
Internamente, o debate passa por limitar a 3,5% a taxa de desconto — conhecida no mercado como MDR (Merchant Discount Rate) — cobrada de bares, restaurantes e supermercados nas vendas com os cartões de benefícios. Além disso, o governo quer reduzir o prazo que as empresas de benefícios têm para repassar o dinheiro dessas vendas para os estabelecimentos. Atualmente, o repasse é feito para os lojistas 30 dias após a venda. A ideia é diminuir para dois dias.
Uma ala do Ministério da Fazenda, liderada pelo secretário de Reformas Econômicas, Marcos Barbosa Pinto, defende uma abertura de mercado, nos moldes do que ocorreu com as maquininhas, em que havia contratos de exclusividade entre as bandeiras de cartões e as operadoras dos equipamentos.
Como funciona
Atualmente, quando um supermercado, um bar ou um restaurante faz uma venda no cartão, tem necessariamente que pagar uma taxa sobre o valor recebido. Essa taxa serve para remunerar os três elos da cadeia de cartões: a maquininha, o banco emissor do cartão e a bandeira (Mastercard, Visa e Elo são as maiores do país). A empresa de maquininhas é responsável por recolher a taxa e repassá-la aos demais participantes da operação.
No caso do setor de benefícios, as empresas tradicionais – como Alelo, Sodexo, Ticket e VR – atuam no mercado por meio de um arranjo fechado de pagamento. Cada companhia tem liberdade para definir sua taxa. Com isso, as empresas de arranjos fechados no mercado de benefícios são a bandeira e o emissor do cartão. As empresas de maquininhas são apenas um intermediário no processo, responsáveis por processar a transação, e são remuneradas por cumprir essa função.
Além disso, pelo modelo atual as empresas de benefícios fazem individualmente o credenciamento de bares, restaurantes e supermercados que podem aceitar os VRs e VAs. Assim, os cartões das diferentes empresas só são aceitos nos estabelecimentos cadastrados. O governo estuda a possibilidade de determinar o fim dos arranjos fechados para que todos os beneficiários dos VRs e dos VAs possam comprar alimentos em todos os bares, restaurantes e supermercados, independentemente se são credenciados ou não pelas operadoras dos cartões de benefícios.
A encruzilhada
As normas vigentes no país já permitem a existência de arranjos fechados e abertos. A equipe econômica de Lula defende a abertura total do mercado para aumentar a competição, só que mantendo a exclusividade na venda de alimentos e refeições com VRs e VAs. A proposta governista prevê um prazo de 18 a 24 meses para que as empresas que operam no modelo dos arranjos fechados passem a operar no formado de arranjo aberto.
Alas do setor veem riscos de o novo modelo afrontar direitos tradicionais dos trabalhadores. Para elas, ao abrir esse mercado de forma ampla, permitindo que fintechs e novos agentes da área de pagamentos ingressem no ramo, por um lado o governo estaria dando um passo para aumentar a competitividade, mas por outro colocaria em perigo um modelo que vem se mostrando funcional e alinhado aos direitos dos trabalhadores.
“O que está em jogo não é apenas o conteúdo de uma reforma, mas a coerência de um projeto político. Como pode um governo nascido da luta pelos direitos sociais legitimar uma reforma que ameaça corroer esses mesmos direitos?”, questiona um representante do setor.
Direito conquistado
Enquanto o governo federal debate internamente as mudanças, os representantes dos trabalhadores defendem que uma eventual abertura de mercado preserve o objetivo do PAT de garantir alimentação de qualidade para os trabalhadores.
Marcelo Rodrigues, dirigente da executiva nacional da CUT (Central Única dos Trabalhadores), afirma que a entidade sempre se posicionou favoravelmente às inovações tecnológicas, desde que seja garantido que os recursos do programa sejam gastos exclusivamente para a compra de refeições e alimentos.
“A CUT tem uma posição histórica favorável ao PAT. Foi assim quando as indústrias instalaram os refeitórios nas fábricas, com a criação dos tíquetes e com a evolução para os cartões. Mas essa abertura de mercado não pode significar que o recurso seja usado para o jogo do Tigrinho ou para apostar em bets. Também não defendemos que o dinheiro seja depositado na conta do trabalhador. Queremos preservar o PAT”, disse Rodrigues ao PlatôBR.