A economia digital vem transformando profundamente, há mais de duas décadas, a maneira como as pessoas consomem produtos, informações e entretenimento. Essa revolução é possível graças aos avanços tecnológicos progressivos — do surgimento dos computadores e da internet, passando pelos smartphones e pelo streaming, até a inteligência artificial generativa, que agora levanta debates sobre seu impacto no mercado de trabalho.

Uma das maiores autoridades do mundo em comportamento do consumidor e hábitos de consumo no meio digital, o norte-americano John Deighton, PhD em marketing e professor da Harvard Business School, lembra que, para além de facilitar o acesso a bens e serviços, essa transformação impacta diretamente, e de forma avassaladora, no produto interno bruto dos países.

Ao lado da pesquisadora Leora Kornfeld, o professor coordena desde 2008 um estudo que monitora o impacto econômico da internet na economia dos Estados Unidos. Os resultados são publicados a cada quatro anos pelo IAB (Interactive Advertising Bureau), principal organização global no segmento de publicidade digital.

A versão mais recente do estudo, publicada neste ano sob o título “Medindo a Economia Digital: Publicidade, Conteúdo, Comércio e Inovação”, aponta que os números da economia digital mais que dobraram desde 2020 nos Estados Unidos e atingiram a impressionante cifra de US$ 4,9 trilhões — nada menos que 18% do PIB do país. Os negócios digitais também vêm impulsionando a geração de empregos em ritmo acelerado: vagas relacionadas à internet vêm avançando doze vezes mais rapidamente do que o mercado de trabalho em geral. No período, a economia digital cresceu 19% ao ano, ante os 7% da economia do país em geral, e gerou 28,4 milhões de empregos.

Uma das frentes mais visíveis das mudanças está no setor de mídia, em que os conteúdos sob demanda tomam lugar da programação tradicional dos canais de televisão e os criadores de conteúdo podem transformar suas habilidades e seu conhecimento em negócio e ganhar ampla visibilidade na internet sem depender do crivo de executivos com poder de definir o que deve ou não ser visto pela audiência. É algo com reflexos diretos, inclusive, na própria cultura dos países, já que a decisão sobre o que deve ser difundido deixa de ser centralizada em poucas cabeças.

“Antes, o que víamos na TV era decidido por executivos e programadores. Agora, vivemos um ecossistema aberto, onde o público escolhe o que quer assistir. Os criadores independentes revolucionaram o consumo de mídia. Há conteúdos populares que jamais seriam aprovados por um canal tradicional”, observa Deighton, um dos palestrantes do fórum “Brasil Criativo e Digital – o novo epicentro da cultura e da economia”, que o PlatôBR promove em Brasília nesta quarta-feira, 15, em parceria com o YouTube.

Eis os principais trechos da entrevista.

Qual é a chave para entender a maneira como a economia digital transformou o jeito de as pessoas consumirem produtos, informações e notícias? O setor de publicidade dos Estados Unidos, por exemplo, já destina 75% de seus recursos à internet.
Essa transformação continua em curso e não ocorreu de forma súbita. Diferentemente de outras revoluções, a digital aconteceu gradualmente, ao longo de cerca de 25 anos. Cada novo comportamento de consumo dependeu de etapas anteriores. Não poderíamos falar em revolução digital sem antes haver computadores portáteis e provedores de internet. Depois vieram os sites, seguidos dos smartphones, uma mudança fundamental na maneira como as pessoas interagem com o mundo digital. Somente então surgiram a computação em nuvem e o streaming. Agora, estamos às portas da próxima grande onda, a inteligência artificial. Essa revolução, que antes avançava lentamente, agora acelera a cada ano.

E, junto com ela, os hábitos das pessoas vão mudando radicalmente.
Os hábitos de consumo evoluem conforme cresce o número de pessoas conectadas. O e-mail, que já foi o símbolo da fronteira digital, deu lugar ao celular, que deixou de ser apenas um telefone para se tornar um portal de acesso à internet. Hoje vivemos a transição da televisão tradicional para o conteúdo sob demanda. Antes, o que víamos na TV era decidido por executivos e programadores. Agora, vivemos um ecossistema aberto, onde o público escolhe o que quer assistir. Os criadores independentes revolucionaram o consumo de mídia. Há conteúdos populares que jamais seriam aprovados por um canal tradicional, como um programa em que um entrevistador oferece molhos cada vez mais apimentados aos convidados. Isso ilustra a dimensão da mudança: o controle saiu das grandes empresas e passou às mãos do público.

A economia digital democratizou o acesso a produtos e serviços, independentemente das classes sociais?
Em certo sentido, sim. Mas o fenômeno mais marcante é a fragmentação. As pessoas agora escolhem os grupos e os conteúdos com os quais querem se conectar, e essas escolhas não seguem necessariamente divisões de classe. Vivemos um cenário em que desaparece uma visão centralizada da sociedade.

Por que seu estudo coloca a criação de empregos como indicador central?
Porque grande parte do que consumimos na internet é gratuito. Se medíssemos apenas pela receita, subestimaríamos o valor econômico da rede. O emprego, ao contrário, reflete trabalho efetivo: ninguém paga salário por algo sem utilidade. Abandonamos também outras métricas tradicionais, como a capitalização de mercado, pois muitas empresas digitais têm valor de mercado altíssimo, mas pouca ou nenhuma receita. É o caso atual da inteligência artificial. Assim, para nós, os empregos representam a medida mais concreta da economia digital.

O YouTube foi pioneiro na economia digital. Como a plataforma contribui para a geração de postos de trabalho e novos negócios no mundo e no Brasil?
A decisão mais inteligente do YouTube foi compartilhar a receita de publicidade com os criadores. Já existiam influenciadores antes, mas ninguém havia tornado essa atividade economicamente viável. Ao permitir que os criadores fossem remunerados, o YouTube abriu espaço para uma nova economia cultural. Além disso, o conteúdo produzido é diverso, imprevisível e criativo, algo que nenhuma emissora tradicional teria ousado lançar. A Netflix, por exemplo, também é uma plataforma digital, mas baseada em decisões centralizadas sobre o que o público deve assistir. O YouTube, ao contrário, oferece um espaço livre, guiado pela escolha do público e pela originalidade dos criadores.

A edição mais recente do seu trabalho mostra que os empregos digitais estão bem espalhados pelos Estados Unidos. É algo que desafia a ideia de que o Vale do Silício é o centro tecnológico do país. Qual é o significado disso, inclusive politicamente?
Essa descentralização torna cada representante político mais consciente da importância da economia digital. Ela ocorre porque muitas ocupações, como comércio eletrônico, produção de conteúdo e transporte por aplicativos, podem ser exercidas de casa ou em qualquer local. Mesmo com grandes empresas, a maior parte das oportunidades surge em plataformas que permitem a pessoas comuns trabalhar por conta própria, como abrir uma loja online ou criar conteúdo digital. Esse é um processo que também se observa no Brasil.

Como os governos devem lidar com as desigualdades de acesso à internet e à educação digital, especialmente em países emergentes como o Brasil?
Acredito que os governos deveriam considerar o acesso à computação e à internet como um bem público essencial. Há experiências nesse sentido, como na Índia. Quanto mais pessoas puderem participar da economia digital, mais forte ela se tornará. Costumo perguntar às empresas: por que cobrar pelo acesso à internet, se a própria rede se valoriza quanto mais gente está conectada? Em última instância, todos ganham com a inclusão digital. O digital substitui tarefas físicas: já não é preciso ir ao mercado ou a repartições públicas para resolver questões cotidianas. Isso representa eficiência e amplia o acesso a serviços, mesmo para quem tem poucos recursos.

A economia digital também transforma a forma como os governos conduzem a política?
Sem dúvida. A última eleição nos Estados Unidos foi chamada de “a eleição dos podcasts”. Candidatos como Donald Trump preferiram conceder entrevistas a criadores independentes em podcasts, em vez de aparecer nos noticiários tradicionais. Isso mostra que os criadores de conteúdo já são mais influentes, tanto à direita quanto à esquerda, do que a mídia tradicional na formação da opinião pública.

O seu relatório mais recente também trata da chamada economia dos trabalhadores independentes. Pode explicar melhor?
A economia dos criadores é apenas uma parte da economia dos autônomos. Hoje, cerca de 3 milhões de pessoas nos Estados Unidos que antes teriam empregos formais trabalham por conta própria. São motoristas de aplicativos, entregadores, prestadores de serviços, artistas, professores. Isso representa aproximadamente 3 dos 11 milhões de empregos diretamente ligados à internet no país. Os criadores são uma força cultural expressiva, mas o fenômeno maior é o empoderamento de indivíduos que constroem suas próprias carreiras sem depender de empregos tradicionais.

A economia digital precisa de uma regulamentação comum entre os países? E como o senhor vê as discussões sobre o tema no Brasil?
É preciso cautela. Toda regulamentação tem efeitos imprevistos. Algumas áreas, como a proteção de crianças e dados médicos, exigem regras claras. Mas outros campos são mais complexos. Nos Estados Unidos, há uma combinação de legislações estaduais e municipais que permitem observar o que funciona melhor em cada caso. Uma regulamentação única e centralizada pode acabar limitando a inovação. O ideal é equilibrar segurança, privacidade e liberdade de experimentação.