Maeve Jinkings é um dos nomes mais potentes da dramaturgia brasileira. De “Aquarius” e “Boi neon” às séries “DNA do crime” e “Os outros”, sua carreira é marcada por papéis densos e inquietos. Em 2025, deu vida a Cecília no remake de “Vale tudo”, da TV Globo, personagem que formou com Laís, interpretada por Lorena Lima, casal que gerou debates e a decepção pela falta de densidade.
Em entrevista ao Papo Amado, do canal Amado Mundo, um dia após o último capítulo da novela ir ao ar, Maeve disse compartilhar dessa crítica e refletiu sobre os limites e avanços na representação LGBTQIAPN+ na televisão aberta. Falou ainda do medo de retrocessos em tempos conservadores e da importância de humanizar esses personagens.
Tida como “atriz cult”, rejeitou o rótulo e disse ver no melodrama uma linguagem capaz de colocar “debates sobre a mesa”. Entre celebração e crítica, ela lamentou a ausência de discussões mais complexas, ainda que destaque o impacto popular da novela, que mobilizou o público e reacendeu a força das histórias contadas na TV aberta.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista. Assista à íntegra ao final do texto. A segunda parte da conversa será veiculada às 18h desta segunda-feira, 27, no canal.
Em “Vale tudo”, houve grande expectativa para que o romance entre duas mulheres fosse desenvolvido de forma plena, mas isso não aconteceu. Como você reagiu?
Eu tinha essa expectativa, como todo mundo. Esperava que o casal tivesse um desenvolvimento mais robusto, por tudo que “Vale tudo” significou em 1988, uma obra ousada e disruptiva em muitos sentidos. Ainda que de maneira tímida, o casal se tornou um ícone. Não tinha beijo, mas a solução foi fascinante: elas fumavam o mesmo cigarro, tinha uma maneira de se relacionarem fisicamente. Foi um grande avanço. A TV aberta tem um histórico de pequenos avanços. É um debate público, que vai além do remake. Diz respeito a todo um histórico de representação de casais homoafetivos na televisão aberta. As decisões em torno dessas representações carecem de sensibilidade, e digo isso com respeito, porque não é sobre a equipe de “Vale tudo”. Matar um personagem LGBTQIAPN+ é uma solução fácil de lidar com o incômodo, mas não tira o elefante branco da sala.
Faz mais de dez anos do beijo de Félix e Niko em “Amor à vida”. De lá para cá, a gente evoluiu ou retrocedeu?
Compreendo isso e não tenho o romantismo de achar que “temos que ser disruptivos”, até tenho isso na minha vida. Mas em uma telenovela, com 30 ou 40 milhões de espectadores por dia, é preciso cuidado. Entrei muito consciente disso. Nunca achei que teríamos cenas de sexo ou muitos beijos, como os casais heterossexuais.
O que você esperava para a personagem?
Humanização. Um desenvolvimento mais coerente e denso. Somos capazes de humanizar qualquer personagem, até vilões. Sendo justa com a direção e a autoria, acho que havia esse desejo no princípio e se tentou fazer isso. Você pode gostar ou não da forma como foi feito. O casal tinha uma coisa luminosa, a música, Paraty, uma atmosfera solar. Mas acho que essas instâncias que tomam decisões poderiam ter mais interesse e uma escuta genuína. Quando a gente invisibiliza ou perde a chance de humanizar a afetividade delas, o desnível fica brutal. Eu sabia que não íamos performar a afetividade como os casais heterossexuais, mas ainda assim a diferença foi grande demais.
Como atriz e mulher bissexual, o que muda pra você quando interpreta uma personagem LGBTQIAPN+ em comparação às personagens heterossexuais que já fez?
A relação que tenho hoje com a minha companheira é a primeira com uma mulher. Minha vida inteira foi com homens e como atriz vivi personagens heterossexuais. Consigo perceber a diferença dramatúrgica e corporal. A liberdade que eu tinha com personagens masculinos era outra. A dramaturgia explorava minha sexualidade de um jeito muito mais livre. Durante muito tempo fui vista como uma mulher muito erotizada no audiovisual, e tudo bem, não tenho problema moral com isso e é um debate que também me interessa. Mas, quando vou para uma personagem LGBTQIAPN+, parece que isso não pode. É a repetição de um discurso social: “Posso até tolerar sua existência, mas, por favor, seja discreto”. Isso é muito violento.
Você tentou conversar isso internamente? Teve acolhimento?
Sim. Queria muito ter esse cuidado e, por isso, evitei conversar durante a novela com jornalistas, mesmo quando sentia interesse. Queria complexificar o debate, não personalizar. Não tenho interesse em gerar nenhum tipo de violência contra a Manuela Dias ou o Paulo Silvestrini, porque não é sobre isso. A Globo é feita de uma diversidade enorme de pessoas, com personalidades e inclinações diferentes, e muita gente ali torcia por esse casal e tentou coisas. A internet passou do limite na violência com a própria Manuela. Como mulher, isso me incomodou. Existe um pequeno monstro de moer mulheres, sempre à espreita. O que desejo é que o debate seja feito com mais complexidade e implicação coletiva.
Tem uma questão industrial por trás. Não dá para fulanizar na Manuela ou no Silvestrini.
Tem um aspecto que é um mérito do remake de “Vale tudo” — goste, odeie, faça “hate watching” ou seja fã da novela — que me lembrou algo que senti no cinema: a alegria de ver as pessoas voltando. Quando vi o bloquinho de Carnaval com o tema da novela, ou amigos marcando festas para assistir ao último capítulo, pensei: “Há quanto tempo não vivíamos isso?”. Fiquei com o gostinho de “puxa, podíamos ter avançado mais”, mas, para uma grande parcela do Brasil, foi incrível. Foi a primeira vez que duas mulheres foram retratadas em dupla maternidade. E a novela tem esse papel, ela coloca um debate sobre a mesa. Esse debate me interessa, me implica como artista e como mulher LGBTQIAPN+, mas acho que ele precisa ser feito com responsabilidade.

