Tragédia carioca motiva mais uma briga política
No ano de 1969, pouco antes de seguir para o exílio em Londres, o nosso poeta maior, cantor e compositor, Gilberto Gil se despediu do povo brasileiro lançando a música Aquele Abraço, enaltecendo as belezas do Rio de Janeiro, sua gente, histórias, tradições, cultos e, com ênfase, as crenças, a arte, o futebol e a natureza. Nos versos do artista, hoje com 83 anos, uma despedida recheada de mensagens à cidade que ele amava, e que a exemplo do país inteiro sofria com as dores impostas pela nefasta ditadura militar. Um cabresto sangrento imposto à arte, à cultura e a tudo aquilo que exigia do ser humano luta e resistência. No refrão, quase um hino hoje perpetuado mundo afora, Gil “explodiu” corações e mentes do carioca, esbravejando que para ele, mesmo de “saída”, o Rio de Janeiro era sempre lindo. E era, tempos outros, 56 anos atrás.
Nesse mesmo ano de 1969, a cantora Evinha vencia o IV Festival Internacional da Canção no Maracanãzinho com a música “Cantiga por Luciana”, e no Estádio do Maracanã, Edson Arantes do Nascimento – Pelé – em 19 de novembro, castigava o goleiro argentino do Vasco da Gama, Andrada, fazendo de pênalti o seu milésimo gol, recorde até hoje não superado. O feito inédito do Rei do Futebol se alastrou pelo mundo em segundos, mesmo numa época sem a magia da internet e anos distantes das mensagens relâmpagos do Whatsapp. Saudosismo à parte, sabemos todos que pelas ruas e becos, pelas praias, comunidades e outros recantos mais do Rio de Janeiro de meio século atrás, talvez a preocupação maior fosse saber a hora do sol se pôr.
Para alguns, retorno ao lar. Para outros, a preocupação com a falta, ou excesso do bronze. Esse Rio aqui lembrado é página virada, não existe mais. No lugar dele há uma cidade nervosa, com um perigo a cada esquina, uma bala perdida sempre em busca de um ninho e, se a sua arte perdeu barrocos, sua periferia se encheu de barracos, e até suas praias calientes assustam a todo instante.
Por ali quem manda é o medo, seja de casa ou visitante. Claro que a nossa pauta aqui tem como pano de fundo a chacina que deixou mais de uma centena de mortos, tingindo com sangue o piso de favelas, matas e morros do Rio. Verdade macabra, que por mais se explique, se justifique e ache razões para torná-la “sucesso”, o fato é que o tapa dói na cara de todos nós, não há como se esquivar desse drama social.
O consolo que resta, se é que existe, é se juntar a uma meia dúzia de pensadores afastados da classe política. E com eles lutar para que haja bom senso, responsabilidade e coragem para que se dê a população daquela cidade o mínimo de proteção contra a ala robusta do crime organizado, e que busque equipar a polícia local, com planos e inteligência. Talvez das tarefas, a mais difícil. Impossível não taxar de chacina um combate, onde de um lado estavam 2.500 policiais fortemente armados, e de outro um grupo de marginais encurralados. Que fique claro aos precipitados e afoitos, que a ação policial teve amparo legal, e não há sobre ela nenhuma acusação em contrário.
O que não elimina nem apaga que o infeliz resultado desse confronto tenha sido, sim, uma chacina. A tragédia de agora, nos complexos do Alemão e da Penha, que também vitimou policiais atuando em defesa da comunidade, nada mais é do um repeteco rotineiro melancólico, que de tempos em tempos submete a população a uma tortura sem fim. Em 2021, no Morro do Jacarezinho, um confronto desse tipo vitimou 27 civis. Em maio de 2022, também na Penha, 23 mortos na estatística fatídica desse Rio de terror. E já no mês de julho mais 16 mortes no Morro do Alemão.
No início do ano de 2023, 13 mortes no Morro do Salgueiro enlutaram mais famílias nessa maratona que parece nunca terminar. Em um estado onde governadores já se acostumaram com o entra e sai de cadeias e tribunais, tudo ganha a chancela de situações suspeitas, mesmo que alguns deles jamais tenham se visto em posições tão desconfortáveis. Mas o ambiente que incomoda a população está longe de ser considerado descontaminado. Com uma série de investigações sobre o que de fato aconteceu no final do mês passado ainda em curso, os institutos de pesquisa buscam na opinião pública algum juízo de valor sobre os fatos, e a avaliação de quem os comanda e produz.
Há votos de aprovação de grande parcela da população, e muitos rejeitam a máxima de que “bandido bom é bandido morto”, tese defendida por José Guilherme Godinho Sivuca, candidato eleito a deputado estadual pelo Rio, em 1994. Fato político relevante, que também atiçou polêmicas após o conflito trágico no Rio, foi a reunião do governador Cláudio Castro com seus colegas bolsonaristas de Goiás, Minas Gerais, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal.
O encontro, que segundo Castro teve Jorginho Mello de Santa Catarina como eficiente marqueteiro, adotou como providência inicial a criação do “Consórcio da Paz”, inicialmente integrado pelos governantes presentes à reunião, prontos para ações emergenciais em caso de imprevistos semelhantes. Espertamente, Tarcísio de Freitas, sem tempo de pedir autorização a Bolsonaro para ir ao evento, optou por opinar via internet.
Não se comprometeu a nada, apenas apoio às ligeiras manifestações dos colegas quando o assunto descambou para insinuações contra o governo Lula. Ibaneis Rocha optou por ficar em Brasília, sendo representado pela vice-governadora, Celina Leão, com chances de ser sua sucessora no Palácio do Buriti. Infelizmente, é fácil identificar os sinais que muitas correntes políticas, da esquerda e da direita, uma vez mais, vão tirar proveito e esmiuçar detalhes na busca de argumentos em benefícios partidários e eleitorais. Claro que sim, inevitável. Lula já se manifestou, classificando o evento como massacre, e o Senado Federal de pronto instalou uma CPI que promete investigar com seriedade tudo que aconteceu.
Na presidência da Comissão, um senador do PT, um motivo a mais para que a oposição a Lula tenha jogado pedras antes mesmo da primeira reunião. Nada mais lugar comum no Brasil do que instalar uma CPI após um acontecimento que termina em tragédia, ou denúncias. Ganha um bilhete premiado quem anunciar, com detalhes, qual resultado final e quem foi punido por alguma CPI realizada nos últimos 5 anos.
José Natal é jornalista com passagem por grandes veículos de comunicação como Correio Braziliense, TV Brasília e TV Globo, onde foi diretor de redação, em Brasília, por quase 30 anos. Especializado em política, atuou como assessor de imprensa de parlamentares e ministros de Estado e, ainda, em campanhas eleitorais
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