A operação policial do dia 28 de outubro nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, tornou-se o episódio mais letal da história do estado, com 121 mortes registradas. A reação do governador, no entanto, expôs uma visão política e moral sobre quem pode ou não ser reconhecido como vítima. Ao classificar a ação como “bem-sucedida”, Cláudio Castro delimitou as fronteiras da humanidade no discurso oficial. Para ele, apenas os policiais mortos merecem esse estatuto. Os demais, rotulados como suspeitos, são contabilizados como números que legitimam o êxito da operação. Essa retórica é a expressão mais nítida da necropolítica, a lógica que define quais vidas são descartáveis em nome da segurança pública.

Ao admitir que a operação foi previamente planejada, o próprio governo reconhece que a letalidade não foi acidental, mas esperada. O secretário de Segurança Pública, Victor Santos, ao considerar o número de mortos um “dano colateral pequeno”, reforçou a ideia de que a morte pode ser tratada como indicador de eficiência. Essa inversão de valores transforma o uso da força letal em referência de produtividade, equiparando o extermínio de suspeitos à apreensão de drogas ou armas. O resultado é um modelo de policiamento que naturaliza o assassinato como ferramenta legítima de controle social, especialmente em territórios marcados pela pobreza e pela ausência histórica do Estado.

O episódio repete o roteiro já conhecido desde a operação no Jacarezinho, em 2021, que deixou 28 mortos. Na ocasião, a violência extrema foi apresentada como um mal necessário. Passados poucos anos, nada mudou. O que se observa é a consolidação de um padrão, no qual operações de grande porte, realizadas em favelas, reservam como saldo um alto número de mortos, baixa responsabilização e amplo apoio popular. A decisão do Supremo Tribunal Federal, por meio da “ADPF das Favelas”, que tentou impor limites e protocolos para tais ações, não alterou a lógica predominante nas forças de segurança. A cultura da guerra segue viva, sustentada pelos discursos oficiais que tratam a letalidade como sinônimo de eficiência.

Essa ideologia militarizada é alimentada por um sistema político que se beneficia da espetacularização da violência. As operações em favelas tornaram-se instrumentos de marketing, projetando governantes como líderes firmes e intransigentes com o crime. A mídia, ao amplificar a narrativa do confronto, colabora para naturalizar o massacre, obscurecendo o fracasso estrutural das políticas públicas. Enquanto os holofotes se voltam para os confrontos diários, as engrenagens econômicas do crime organizado permanecem intactas (o tráfico de drogas, o comércio de armas e combustíveis e a lavagem de dinheiro continuam operando com a mesma vitalidade).

Enquanto as mortes se acumulam, os corpos são identificados e as famílias enlutadas buscam por respostas, o poder público celebra o massacre como vitória. A indiferença institucional revela a banalização da vida e o enfraquecimento da democracia. Quando o Estado autoriza a morte em nome da segurança, ele abdica de sua própria legitimidade. A história recente mostra que essas operações não reduzem o poder das facções, não desarticulam os mercados ilícitos nem restituem a paz. Apenas reafirmam um projeto de segurança pública que confunde poder com violência e transforma a morte em capital político.

Nada indica que o massacre do Alemão e da Penha será o último. Temos visto mais do mesmo em 40 anos de Rio de Janeiro. E a persistência dessa lógica sugere que novas tragédias virão, impulsionadas por um Estado que insiste em medir sua força pela quantidade de corpos que deixa no caminho.

Fillipi Nascimento é cientista Social. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper