Projeto antifacção vira campanha pré-eleição
O inesperado chegou de surpresa, e por alguns momentos roubou as atenções de muitos que esperavam fortes emoções na votação na Câmara dos Deputados do projeto de Lei que regulamenta e determina ações efetivas no combate ao crime organizado no Brasil, o PL Antifacção, elaborado pelo Governo. Ocupando espaço nobre na mídia por longo tempo, gerando polêmica e alvoroço, o projeto foi votado dividindo as atenções dos parlamentares, ainda atordoados e com as atenções voltadas para os desdobramentos do escândalo gerado pela prisão do dono do Banco Master, Daniel Vorcaro, gerando também a extinção do banco.
Historicamente, no Brasil, fatos como esse mexem com o ambiente financeiro, e incomoda o meio político, principalmente. No final da votação, 370 votos a favor do relatório elaborado pelo deputado bolsonarista Guilherme Derrite, e apenas 110 votos a favor do texto enviado pelo Governo. Texto alterado cinco vezes antes de ser levado a plenário, com mudanças radicais, contestadas com ênfase e alguma dose de revolta.
À luz da razão, com certeza, 90% da população brasileira não sabem agora, e nem saberá amanhã, explicar em uma hora de conversa quase nada do que foi debatido, aprovado ou reprovado no projeto que mobilizou esquerda e direita, num debate acirrado, com cenas explícitas e indisfarçáveis de interesses regionais, de olho no pleito eleitoral de 2026. Com um critério técnico inseguro e confuso, Hugo Motta, presidente da Câmara dos Deputados, indicou Guilherme Muraro Derrite, deputado federal e secretário de Segurança Pública do governo de São Paulo, como relator talvez de um dos mais importantes projetos levados ao Parlamento nesse ano que finda de 2025. Segundo a crença popular, colocou a raposa para tomar conta do galinheiro.
Aliado do mundo bolsonarista, umbilicalmente ligado ao governador Tarcísio de Freitas, e sem rodeios, um contestador assumido dos métodos adotados sobre segurança do governo petista, Derrite dançou valsas, lambadas e baião, numa cansativa jornada, até que tudo terminasse em samba, como a turma queria, e no final se viu vencedora. De um lado, muita choradeira. De outro, efusivas manifestações, uma vez que na contagem final os argumentos apontados pelo relator, alterados ou não, praticamente prevaleceram, com raríssimas exceções.
O PL elaborado pelo Governo estava na gaveta há tempos, amoitado pela oposição, que nunca sinalizou simpatia por ele, e tudo fez para abafá-lo. Veio à tona após a matança destramelada no Rio de Janeiro, talvez como um bálsamo salvador na busca de uma resposta à opinião pública. Afoito, e seguindo a risca sua doutrina de PM escolado, Derrite logo nas primeiras falas arrepiou os cabelos de Motta, que sentiu a lambança que fez ao escolher um relator literalmente comprometido com a correntes conservadoras da direita ativa e combatente. A primeira bola fora do deputado foi explicitar que, para que a Polícia Federal atuasse com investigações nos estados da federação, teria que antes consultar o governo estadual. Medida de pronto rechaçada, até por quem estava ao lado do relator.
Outras sugestões, como aplicação de verbas, uso de tropas federais, tempo de prisão aplicado a condenados, conduta judicial em casos similares foram contestados por governistas e juristas mais acostumados ao tema. Segurança pública, pedra no sapato de governantes desde o tempo do Império, está no topo de todas as preocupações da nossa comunidade, eterna vítima de arranjos políticos oportunistas que adoram subir em palanques quando ganham de presente pacotes bem embrulhados que a mídia, por obrigação profissional, tem que badalar.
Após o resultado da votação, salta aos olhos dos mais sabidos, e até dos leigos, o interesse partidário e eleitoreiro de muitos daqueles que, sem pudor, querem tirar uma casquinha na exposição que esse movimento proporciona. Atrelado aos interesses políticos de alguns dos governadores pré-candidatos às eleições de 2026, o relatório aprovado não teve nenhuma timidez em escancarar com todas as letras as benesses que eles esperavam.
Os aliados Romeu Zema, Cláudio Castro, Ronaldo Caiado e Celina Leão marcaram presença nos corredores da Câmara, ainda nos primeiros movimentos de Derrite em busca de apoios. Ele também ouviu sussurros de pesos- pesados como Eduardo Cunha e Arthur Lyra, ex-presidentes da Câmara e escolados. Os três, à luz de velas, jantaram no restaurante Manuelzinho, em Brasília, local onde o poder e tudo a seu redor costumam ser analisados por gente poderosa.
Não se sabe quem pagou a conta, mas no menu, além de bacalhau e duas garrafas de vinho, também estavam na mesa duas ou três sugestões para mudança de itens importantes do relatório, até então em gestação. Sabidamente Derrite não tem voto próprio, e isso ficou claramente demonstrado após tantas idas e vindas na elaboração de um documento a ser votado em plenário, cuja destinação interessa sobejamente a toda a comunidade, a todo o País. Com parlamentares ausentes de Brasília devido à COP-30, em Belém, e a pronta reação do Governo diante de uma evidente mudança de rumos quanto ao futuro do PL, a votação teve sucessivos adiamentos.
Com o índice de criminalidade em alta, populações cada vez mais aprisionadas em casa com medo de assaltos e roubos, e o crescente registro de execuções sumárias em praça pública, é doloroso assistir a embates robustos de demagogia, nunca bem explicados ao cidadão e com claras demonstrações de busca de poder territorial, como se ainda estivéssemos submetidos à vontade de capitanias hereditárias. As primeiras sugestões apresentadas pelo relator, limitando a atuação da Polícia Federal, para especialistas, foi o fio condutor de várias outras que motivaram uma observação mais atenta do que estava por vir.
Todas as pesquisas, em todas as análises feitas nos últimos tempos, apontam a Polícia Federal como uma das entidades de maior credibilidade junto à opinião pública. Imaginar um projeto de lei que limita a atuação de uma entidade acima de qualquer suspeita eleva o grau de preocupação quanto à seriedade de outras decisões. A comunidade clama por ações efetivas, constantes e desprovidas do aparato burocrático que tanto desgasta e carece de bons resultados.
O cidadão comum está pouco interessado em saber artigos e detalhes obsoletos que pouco resultam em sua proteção e amparo. Isso o projeto não explica, mas na verdade todos querem é o fim das milícias assassinas, dos comandos criminosos e o direito sagrado de ir e vir, com segurança, como pede a Constituição. O debate chegou ao Senado com redobrada expectativa de possíveis mudanças.
José Natal é jornalista com passagem por grandes veículos de comunicação como Correio Braziliense, TV Brasília e TV Globo, onde foi diretor de redação, em Brasília, por quase 30 anos. Especializado em política, atuou como assessor de imprensa de parlamentares e ministros de Estado e, ainda, em campanhas eleitorais
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