Votações de alto impacto político e institucional na Câmara têm ocorrido com um contraste cada vez mais visível: enquanto o painel eletrônico registra quórum elevado, o plenário está fisicamente esvaziado. Foi o que se viu em deliberações recentes como a votação da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), a suspensão do mandato do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) e a decisão que manteve o mandato de Carla Zambelli (PL-SP), aprovadas com centenas de votos registrados, mas com poucas dezenas de parlamentares presentes em plenário.
O fenômeno não é pontual. Dados do Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar) mostram que, desde a pandemia de Covid-19, a Câmara passou por uma mudança estrutural no seu funcionamento, com a consolidação do modelo semipresencial nas sessões deliberativas. Em 2019, antes da crise sanitária, todas as 185 sessões de votação ocorreram de forma presencial. Em 2020, esse padrão foi rompido com a adoção do modelo virtual. A partir de 2021, o formato semipresencial ganhou centralidade e, mesmo após o fim das restrições sanitárias, não foi abandonado.
Segundo o levantamento do Diap, em 2022 houve 79 sessões semipresenciais; em 2023, foram 99; e em 2024, outras 63. Em 2025, observa-se um retorno parcial das sessões presenciais, com 61 registros até agora, mas o número de sessões semipresenciais segue praticamente no mesmo patamar, com 56 deliberações nesse formato.
Para Neuriberg Dias, diretor de documentação do Diap, os números indicam que o modelo adotado durante a pandemia deixou de ser exceção e foi incorporado de forma permanente à rotina legislativa. Ele explica que a continuidade do modelo foi formalizada pelo Ato da Mesa nº 154, de fevereiro de 2025, que regulamenta o funcionamento das sessões e estabelece, como regra, sessões presenciais às terças, quartas e quintas-feiras, e semipresenciais às segundas e sextas.
“Mesmo com a retomada parcial das sessões presenciais, o regime semipresencial permanece institucionalizado e é utilizado de maneira estratégica para viabilizar a deliberação de matérias no plenário”, afirma. Segundo ele, ao tornar a presença física facultativa em parte significativa das sessões deliberativas, o modelo contribui para uma redução da ocupação do plenário em comparação ao período anterior à pandemia.
De longe, pelo app
Na prática, o formato permite que deputados registrem presença e votem remotamente, por meio de aplicativo, o que ajuda a explicar o descompasso entre o quórum elevado no sistema eletrônico e a baixa presença física no plenário. Para críticos, a dinâmica levanta questionamentos sobre o impacto simbólico e político de decisões tomadas sem o ambiente tradicional de debate presencial.
A coordenadora de análise política da agência de relações públicas Prospectiva, Marina Pontes, pondera que o modelo semipresencial trouxe ganhos operacionais importantes. Segundo ela, antes da pandemia, períodos como festas regionais, eleições ou agendas internacionais esvaziavam o Congresso e paralisavam completamente os trabalhos. “O modelo semipresencial deu flexibilidade para que os trabalhos não ficassem estacionados quando os parlamentares não estão em Brasília”, diz.
Ela também relativiza a ideia de que a presença física, por si só, garanta um debate mais qualificado. “As negociações mais importantes são concentradas nas lideranças, especialmente nas reuniões de líderes, e isso não se altera necessariamente com o modelo presencial ou remoto”, emenda. Para Marina, o centro decisório do Poder Legislativo já não está no plenário há algum tempo. “Existem outras variáveis que afetam a qualidade do debate, como a lógica das emendas parlamentares e a própria racionalidade de troca que hoje estrutura a relação entre Executivo e Congresso”, avalia.
A analista questiona o peso simbólico do plenário cheio no atual funcionamento da casa. “Muita gente vai ao plenário ou às comissões, faz o seu take para as redes sociais e vai embora”, afirma. Ainda assim, a consolidação de um modelo criado em caráter emergencial reacende o debate sobre transparência, ritual democrático e responsabilização política.
Para Neuriberg Dias, ao institucionalizar o modelo semipresencial a Câmara redefine de forma duradoura o modo como decisões são tomadas, concentrando mais poder na presidência da Casa e no Colégio de Líderes, responsáveis por definir pautas e regimes de funcionamento.
O resultado é um Parlamento que segue deliberando com intensidade, mas cada vez menos visível ao público que acompanha as sessões pela ocupação do plenário. Entre ganhos de eficiência e questionamentos sobre legitimidade simbólica, o contraste entre o painel cheio e as cadeiras vazias passou a fazer parte do novo normal do processo legislativo brasileiro.
