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Justiça que tarda e falha: o caso Evaldo Rosa

No dia 7 de abril de 2019, Evaldo Rosa passava com a família por uma travessa próxima à favela do Muquiço, no bairro de Guadalupe, no Rio de Janeiro, quando teve o carro alvejado por tiros de fuzil do Exército Brasileiro. Os soldados atiraram 82 vezes, acertando 62 vezes contra o carro de Evaldo, que morreu na hora. A absolvição dos réus pelo Tribunal Militar reacendeu questionamentos sobre o funcionamento do sistema de Justiça.

O caso de Evaldo é emblemático por condensar tensões históricas. De um lado, a persistência do racismo institucional. Do outro, a legitimação da violência do Estado contra corpos negros oriundos das camadas populares. O fato de os militares haverem disparado tantas vezes sem prévia averiguação, resultando na morte do músico e ferindo seu sogro, conecta-se a um padrão de abordagens policiais hostis e violentas direcionadas preferencialmente a negros e moradores de periferias. Não se tratam de incidentes isolados, mas de um modus operandi forjado ao longo de séculos de desigualdade.

É necessário pensar no papel do Tribunal Militar, cuja absolvição dos acusados reflete a complexa relação entre as Forças Armadas, a polícia e a aplicação da lei, marcada por um histórico de corporativismo e baixa responsabilização de agentes do Estado. A ausência de punição, nesse sentido, reforça a crença difusa de que há uma “licença para matar” quando as vítimas são pessoas negras e pobres. A seletividade penal opera de modo a priorizar o controle, a punição e o encarceramento de indivíduos das classes mais baixas, em especial negros, enquanto agentes do Estado gozam de benefícios institucionais que dificultam sua responsabilização. O resultado é um sistema de Justiça que, na percepção popular, serve antes aos interesses das classes dominantes.

A fala da esposa de Evaldo ganha ressonância não só pela tragédia pessoal, mas por ecoar experiências comuns a milhares de famílias negras que perderam seus entes queridos em circunstâncias semelhantes, muitas vezes sem a mínima possibilidade de reparação ou justiça.

A violência racista do Estado não é circunscrita a um caso isolado. Ela se repete em diferentes contextos, sustentada por narrativas que criminalizam a pobreza e associam, estereotipicamente, o indivíduo negro à delinquência. Esse imaginário racializado influencia a ação dos agentes de segurança, que se sentem autorizados a agir com letalidade desproporcional, respaldados por uma estrutura institucional que dificilmente os responsabilizará.

A visão de que “não existe Justiça para pobre e preto” se sustenta em dados concretos. As estatísticas de homicídios no Brasil mostram que a imensa maioria das vítimas é negra, jovem e residente de periferias urbanas. A letalidade policial também segue o mesmo padrão.

Enquanto isso, processos judiciais contra agentes estatais violentos costumam resultar em impunidade. Essa lógica faz com que comunidades inteiras internalizem a sensação de desamparo e descrença nas instituições, alimentando um ciclo vicioso: a sensação de vulnerabilidade e falta de proteção reforça a ideia de que a vida negra vale menos para o Estado, o que por sua vez legitima a continuidade dessas práticas violentas.

A absolvição dos militares responsáveis pelos tiros que ceifaram a vida de Evaldo Rosa representa, além de um ato jurídico, uma mensagem simbólica poderosa: a de que a militarização da segurança pública e a guerra não declarada contra a pobreza e a negritude podem seguir adiante sem freios. Como mostram importantes estudos sociológicos sobre segurança pública, a militarização dos territórios populares não reduz a violência, mas a redistribui, frequentemente convertendo as periferias em espaços de exceção, onde direitos básicos não são garantidos.

Da perspectiva da família de Evaldo, do ponto de vista da comunidade negra e das periferias, essa decisão do Tribunal Militar é mais um capítulo na história de uma justiça que serve a poucos. Ao não produzir responsabilização efetiva, o Estado solapa a confiança de seus cidadãos mais vulneráveis, reforçando a ideia de que a Justiça não é neutra ou universal, mas um recurso acessível apenas a quem tem privilégios raciais e de classe.

Fillipi Nascimento é cientista Social. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper

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