O STF deu esta semana um passo importante para a revisão do entendimento que prevaleceu até hoje sobre a Lei da Anistia, de 1979. O plenário virtual da Corte formou maioria nesta terça, 11, para reconhecer a repercussão geral do julgamento, ainda sem data marcada, que vai decidir se o perdão concedido para os perseguidos pela ditadura deve contemplar também os responsáveis pelos desaparecimentos das vítimas. Caso haja mudança de interpretação, estará aberto o caminho para a punição dos agentes da repressão que sumiram com os corpos de 210 adversários do regime militar.
O atual julgamento não alcança o mérito do caso concreto, em que o Ministério Público Federal tenta responsabilizar o coronel do Exército Lício Maciel pelos desaparecimentos de guerrilheiros do Araguaia (o outro réu do caso, o major Sebastião Curió, morreu em 2022, antes da conclusão do processo). Na floresta, são cerca 60 desaparecidos.
Relator do caso, o ministro Flávio Dino defende que a ocultação de cadáver não pode ser abarcada pela Lei da Anistia por ser um crime continuado, ou seja, só termina quando o corpo da vítima for localizado e identificado. Para Dino, acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário tratam o desaparecimento forçado como um crime permanente.
Dino cita como exemplo o desaparecimento do ex-deputado federal Rubens Paiva, cuja história é contada no filme Ainda Estou Aqui, que concorre ao Oscar de Melhor Filme, Melhor Filme em Língua Estrangeira e Melhor Atriz (para Fernanda Torres pelo papel de Eunice, esposa do político). Dois dos cinco militares acusados pelo desaparecimento de Paiva ainda estão vivos, o general José Antônio Nogueira Belham e o major Jacy Ochsendorf e Souza.
Dino lembra ainda do remador Stuart Angel, que jamais teve o corpo localizado. Sua mãe, a estilista Zuzu Angel, denunciou o caso ainda durante a ditadura e morreu sob circunstâncias misteriosas. Outro caso emblemático é o das ossadas encontradas, em 1990, na vala clandestina do cemitério de Perus, na zona noroeste da capital paulista. Quase 25 anos depois, a maioria das ossadas não foi identificada. Além do relator, até o momento, votaram pela repercussão geral os ministros Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Carmen Lúcia, Alexandre de Moraes e Edson Fachin.
Para o diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, Rogério Sottili, a decisão do STF aumenta a pressão sobre o ministro Dias Toffoli, relator da ADPF 320, que tramita desde 2014. A ação tenta derrubar a anistia nos casos de desaparecimento forçado, tortura e assassinato. A fundamentação usada nesta nova ação, de desrespeito a tratados dos quais o Brasil é signatário, não foi analisada na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) anterior, de 2010.
Sottili considera necessária uma nova interpretação da anistia. “O momento é muito propício, até pela participação dos militares na tentativa de golpe investigada pela PF e nos atos de 8 de janeiro de 2023", afirma.
A anistia ampla de 1979 foi confirmada na Constituição de 1988 e em uma decisão de 2010 sobre a ADPF 153, ajuizada pelo Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).