“Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, no domingo, 2, é um fenômeno de crítica e público e já foi assistido por mais de 5 milhões de espectadores. O filme furou a bolha, foi abraçado pelos brasileiros e tem agradado a públicos diversos, inclusive os evangélicos.
“Ainda Estou Aqui” conta a história de Eunice Paiva, mãe de cinco filhos, e o drama após o sequestro e assassinato de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, pela ditadura militar. O filme conseguiu ultrapassar as fronteiras da esquerda e da direita.
“Será que a gente pode gostar de filme de esquerda?”, perguntou o pastor Yago Martins, da Igreja Batista Maanain, que se diz conservador e de direita, a seus mais de 900 mil seguidores em uma rede social ao propor um debate sobre a película estrelada por Fernanda Torres. Logo na sequência, ele observou que o filme fala de ditadura.
“Não sei se vocês sabem, mas se não sabem quero que saibam que ditadura é uma coisa ruim, qualquer que seja. Se você é um maluco que acha que existe algum motivo que justifique ditadura, só porque é uma ditadura que dizem que era contra a esquerda, você perdeu o juízo e seu lugar não é nesse canal", afirmou Martins.
"Eu sou um cara de direita, conservador, mais de direita do que a maioria de vocês que me assistem, e sou contra qualquer ditadura e qualquer ato de violência do governo que aja contra cidadãos comuns e contra outros políticos”, completou o pastor.
“Seja ditadura de direita, seja ditadura de esquerda, todas elas serão uma desgraça para a sociedade. Se um filme como ‘Ainda Estou Aqui’ é um filme cujos personagens envolvidos hoje são personagens de esquerda, e é um filme contra a ditadura militar, a pergunta que importa é se a crítica que o filme faz é justa, é boa. O recorte apresentado é fiel aos fatos? E, no fim, quais são as lições que a gente pode tirar disso?”, questionou.
Em um artigo para a Folha de S.Paulo, em novembro, o pastor evangélico Ricardo Gondim, da Igreja Betesda, disse ter chorado durante quase toda a exibição de “Ainda Estou Aqui” porque a trajetória de sua família se enquadraria exatamente no enredo do filme. Seu pai, Eródoto José Rodrigues, então primeiro-sargento da Aeronáutica, foi preso no dia do golpe militar, em 1º de abril de 1964, e sofreu torturas.
Sua mãe, com cinco filhos, passou a viver em busca do marido. “Tortura esmaga, tritura, pulveriza pessoas e as sequelas são para sempre”, disse o pastor Gondim. A diferença, no caso, foi que o pai de Gondim voltou para casa, ao contrário de Rubens Paiva.
Para Fábio Py, teólogo protestante e professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), o filme foi bem recebido também entre evangélicos por abordar a questão da mulher, da família e da violência.
“Há certos produtos que perpassam a questão política e ganham outras proporções. É interessante observar que entre os principais líderes evangélicos ninguém se posicionou. O filme toca na questão da família, da mulher, e da ditadura, que é sempre um problema. É difícil ser contra isso”, diz.
Entre os próprios familiares do teólogo, alguns deles membros da igreja Assembleia de Deus, o filme foi visto, comentado e elogiado. “Distante das grandes lideranças, como Silas Malafaia e Edir Macedo, alguns setores (entre os evangélicos) circulam e assistem aos filmes, como ‘Ainda Estou Aqui’, e se identificam. Os crentes assistem, se interessam, e furam a bolha. E debatem o tema da ditadura”, emenda Fábio Py.
Há vários casos de evangélicos que foram vítimas da repressão ou tiveram familiares perseguidos pelo regime militar. O pastor presbiteriano Jaime Wright (morto em 1999), teve um irmão, Paulo Stuart Wright, desaparecido e morto por órgãos de repressão. Jaime Wright se tornou um ativista dos direitos humanos e foi um dos responsáveis pelo projeto "Brasil: Nunca Mais", que denunciava a tortura, ao lado do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns (morto em 2016).
Anivaldo Padilha, militante estudantil e líder da Juventude Metodista, foi preso e exilado nos anos 1970 por fazer parte da organização de esquerda Ação Popular. Anivaldo, também integrante do "Brasil: Nunca Mais", é pai do ministro da Saúde, Alexandre Padilha.