A disputa pela última palavra
Não é de hoje que o Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional disputam a última palavra sobre o significado da Constituição. Independentemente dos diferentes arranjos de nossa história constitucional, que atribuía funções distintas ao Supremo e ao Senado, essa disputa permanece após a Constituição de 1988, com o Congresso desafiando as decisões do tribunal.
Uma face dessa disputa se revela no âmbito de uma produção legislativa descompromissada com a Constituição e com as interpretações do Supremo Tribunal Federal. É o que tem acontecido em projetos de lei que procuram abolir direitos reconhecidos a pessoas LGBTQIA+, ora procurando impedir a união civil entre pessoas do mesmo sexo, ora atacando identidades de gênero.
A afronta é explícita. No parecer do projeto de lei voltado a banir a união entre pessoas do mesmo sexo, o relator aponta que “mais uma vez, a Corte Constitucional brasileira usurpou a competência do Congresso Nacional [...] pautou-se em propósitos ideológicos, o que distorce a mens legislatoris e a vontade do povo brasileiro, que somente se manifesta através de seus representantes regularmente eleitos”.
O exemplo mais desavergonhado dessa faceta é a reinstituição, por lei, da tese do marco temporal para proteção de terras indígenas, imediatamente após a declaração de sua inconstitucionalidade pelo Supremo.
Outra frente da disputa é percebida quando o Congresso busca alterar o parâmetro da interpretação, ou seja, o próprio texto constitucional. Por exemplo, o Congresso tentou, via proposta de emenda à Constituição (PEC), reintroduzir o financiamento de campanhas eleitorais por empresas, vedado pelo Supremo em julgamento de levou anos para terminar. Já no caso da vaquejada, considerada pelo tribunal como uma prática de crueldade com animais, o Congresso aprovou uma ressalva no texto constitucional: proibir a crueldade com animais, mas permitir práticas desportivas que usem animais e que se sejam manifestações culturais. O curioso deste caso é de que a emenda constitucional que autorizou a vaquejada foi questionada no Supremo Tribunal Federal; ainda não há decisão.
Outras disputas tomam a forma de desmoralização do tribunal. Aqui se insere a tramitação de uma proposta de anistia aos condenados pelos atos do 8 de janeiro de 2023, que invadiram e depredaram o Supremo Tribunal Federal na esperança de um golpe. A justificativa da proposta afirma que o Supremo não tem sido capaz de individualizar a conduta dos “manifestantes” e que, portanto, as condenações seriam injustas. O Supremo tem julgado os envolvidos no 8 de janeiro, condenando-os por ampla maioria do colegiado. Anistiar quem queria destruir o tribunal mostra que o Congresso não tem compromisso nenhum com a institucionalidade democrática.
Porém, há outras faces ainda mais perigosas dessa disputa por poder, que miram direto na jugular do tribunal. A PEC 28/2024 prevê que “se o Congresso Nacional considerar que a decisão exorbita do adequado exercício da função jurisdicional e inova o ordenamento jurídico como norma geral e abstrata, poderá́ sustar os seus efeitos pelo voto de dois terços dos membros de cada uma de suas Casas Legislativas”. Ou seja, a PEC pretende dar ao Congresso o poder de sustar decisões do tribunal, sem qualquer critério, por até quatro anos.
A justificativa da PEC conta com apenas uma página, sustentando que a medida “bem pondera núcleo essencial da Separação de Poderes, freios e contrapesos”, o que demonstra – se não estivesse bastante óbvio – que o propósito não é promover qualquer aperfeiçoamento institucional, mas sim acabar com o tribunal.
Entre leis e emendas que desafiam decisões, anistias que festejam aqueles que querem destruir o tribunal e reformas que afrontam o estado de direito, o Congresso parece ter criado uma frente ampla contra o Supremo. Em disputa, está mais do que dar a última palavra sobre a Constituição; está a sua própria sobrevivência.
Eloísa Machado é coordenadora do projeto Supremo em Pauta, da Fundação Getúlio Vargas (FGV)
"Os artigos publicados nesta seção não refletem, necessariamente, a opinião do PlatôBR."