A Dívida Pública e Os Mercados Financeiros
Vamos começar com as observações do filósofo e economista italiano Vladimiro Giacchè, autor de um livro magnífico sobre Hegel. Em artigo recente, Giacchè trata da reabilitação dos críticos do capitalismo desbragado, críticos abandonados e desconsiderados nos tempos da pandemia neoliberal.
Diz Giacchè que ”o capitalismo enfiado em seu egoísmo ‘saudável’, gerando e distribuindo riqueza para todos, com capacidades autorreguladoras superiores a qualquer regra imposta de fora, emergiu como uma mixórdia de processos desconjuntados, que precisam de rios de dinheiro do Estado para voltar a funcionar. O resultado é que a imagem do capitalismo de hoje é a de um sistema no qual injustiças intoleráveis andam lado a lado com uma dramática ineficiência na alocação de recursos.” Assim falou Giacchè.
Retomamos a palavra. Até meados dos anos 70 do século passado, as economias capitalistas desenvolvidas prosperaram em um ambiente de ganhos de produtividade, sistemas de crédito direcionados para o investimento, aumento dos salários reais, redução das desigualdades e ampliação dos direitos sociais.
Em seu formato “fordista” e keynesiano, o circuito de formação da renda e do emprego era ativado primordialmente pela demanda de crédito para financiar o gasto dos empresários, confiantes nos efeitos recíprocos entre os fatores que ancoravam suas expectativas: 1. O crescimento da renda dos trabalhadores. 2. O avanço dos lucros corporativos e a multiplicação de pequenas e médias empresas. 3. A expansão estável das receitas e dos gastos públicos.
É necessário sublinhar que, sob esta forma institucional da economia monetária capitalista, a expansão do endividamento privado e da dívida pública era “absorvida” pelo crescimento da renda.
O circuito da renda e do emprego desenvolvia-se, então, nos espaços nacionais da economia internacional, impulsionando o adensamento das relações domésticas entre a manufatura, os serviços e a agricultura. A formação da renda e da demanda agregadas decorria da disposição de gasto dos empresários com salários e outros meios de produção que também empregam assalariados. Ao decidir gastar com o pagamento de salários e colocar sua capacidade produtiva em operação ou ampliá-la, o coletivo empresarial avalia a perspectiva de retorno de seu dispêndio imaginando o dispêndio dos demais.
Na era da globalização, a redistribuição espacial da manufatura e o avanço tecnológico engendraram a precarização do emprego, a estagnação dos rendimentos dos trabalhadores e, assim, reduziram a capacidade de difusão do gasto das empresas. As famílias submetidas à lenta evolução dos rendimentos sustentaram a expansão do consumo na vertiginosa expansão do crédito, que criou poder de compra adicional para as famílias de baixa e média renda, ao mesmo tempo que as aprisionou no ciclo infernal do endividamento crescente.
No topo da pirâmide da distribuição da riqueza e da renda, os credores líquidos engordaram seus portfólios com a valorização dos ativos imobiliários e financeiros. Os detentores de riqueza financeira apropriaram-se, ademais, do “tempo livre” criado pelo avanço tecnológico, que promove simultaneamente a desqualificação da massa assalariada e a polarização do mercado de trabalho; os “desqualificados” tornam-se dependentes crônicos do endividamento, sempre ameaçados pelo desemprego e, portanto, obrigados a competir desesperadamente pela sobrevivência.
Sob os auspícios do capital financeiro e de um sistema monetário internacional assimétrico, ocorreu a brutal centralização do controle das decisões de produção, localização espacial e utilização dos lucros em um núcleo reduzido de grandes corporações e instituições financeiras à escala mundial. A centralização do controle impulsionou e foi impulsionada pela fragmentação espacial da produção.
A centralização do comando no capital financeiro alterou profundamente a estratégia da grande empresa produtiva. Os lucros acumulados são primordialmente destinados às operações de tesouraria. Já os novos empréstimos financiam a recompra das próprias ações para garantir “valorização” da empresa. Dados do Federal Reserve revelam que, no período 2003-2008, o volume de crédito destinado a financiar posições em ativos já existentes foi quatro vezes maior do que os créditos destinados à criação de emprego e renda no setor produtivo.
Na posteridade da crise de 2008, a reiteração da dominância da forma financeira da riqueza foi ancorada “em derradeira instância” no inchaço das dívidas públicas nacionais. Os títulos do governo americano garantiram as políticas monetárias de “facilitação quantitativa”, com suas consequências na deformação da riqueza e na ampliação das desigualdades.
Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autor de vários livros, entre eles “Valor e Capitalismo” e “Os Antecedentes da Tormenta”, e ocupou cargos públicos como o de secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e o de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo
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