A esquerda brasileira está mesmo isolada?
Recentemente, a ex-deputada federal Manuela d’Ávila, em entrevista concedida à Folha de S.Paulo, traçou um diagnóstico crítico das fragilidades da esquerda brasileira, sobretudo no tocante à sua capacidade de mobilização social e disputa simbólica no ambiente digital. Neste texto busco realizar uma análise crítica dos elementos centrais de seu diagnóstico, observando os fundamentos e implicações de suas colocações.
D’Ávila articula uma crítica em três eixos principais, quais sejam, o afastamento simbólico e material entre representantes e representados, a incapacidade de mobilização social no contexto atual e a ineficiência comunicacional diante do avanço da extrema direita no ambiente digital.
O primeiro eixo se constrói em torno da percepção de que há um descolamento entre os modos de vida das figuras públicas da esquerda institucional e a realidade da população trabalhadora. Esse distanciamento revela uma crise de legitimidade na representação política, onde o cidadão comum vê os rituais e os benefícios da vida parlamentar como sinais de uma elite política isolada, insensível à precariedade cotidiana. Isso cria um terreno fértil para que discursos populistas e simplistas floresçam e ganhem aderência, ao se apresentarem como mais próximos da vivência popular (ainda que essa proximidade seja cuidadosamente encenada e instrumentalizada para fins políticos).
A leitura proposta coloca em xeque o sistema político como um todo, mas destaca que a esquerda, ao se recusar a reconhecer esse desgaste estrutural, perde a capacidade de se reposicionar perante os eleitores. A crítica aqui aponta para uma falha maior que é a recusa em revisar práticas, linguagens e modos de atuação que se tornaram disfuncionais em um cenário de descrédito generalizado da política.
O segundo eixo da análise reside na dificuldade de mobilização das forças progressistas, um fenômeno que não é restrito ao Brasil, mas que adquire aqui novos contornos. Essa dificuldade está vinculada a transformações mais amplas na esfera pública, com o deslocamento progressivo do espaço de debate e articulação para o meio digital. No entanto, o que deveria representar uma ampliação das possibilidades de diálogo e mobilização tem se revelado, contraditoriamente, um fator de isolamento. Isso se deve à lógica dos algoritmos, que não são neutros nem transparentes, e que tendem a impulsionar conteúdos mais polarizados, moralistas e agressivos (características exploradas com êxito pela extrema direita).
A esquerda, por sua vez, tanto falha em compreender a arquitetura dessas plataformas quanto tem dificuldade em se adaptar às novas formas de produção de sentido e organização coletiva que surgem nesse ambiente. Há uma insistência em replicar estratégias do século XX em um ecossistema político e comunicacional do século XXI, o que gera um atraso competitivo e uma perda de espaço simbólico.
O terceiro eixo diz respeito à comunicação do governo e, por extensão, da esquerda governista. A crítica aqui é mais estratégica do que técnica. Não se trata apenas de avaliar a qualidade dos materiais produzidos ou a presença nas redes, mas de entender a natureza do conflito comunicacional em curso. Em um cenário de guerra informacional, qualquer política pública, discurso ou ação institucional é passível de distorção. Dessa forma, comunicar não é apenas transmitir uma mensagem, mas antecipar, prevenir e disputar sentidos em um ambiente dominado pela desinformação. A crítica implícita é à ausência de uma gramática comunicacional que considere esse ambiente beligerante como parte da arena política, e não como uma dimensão secundária.
A ideia de que os problemas enfrentados pelo governo seriam resolvidos com uma “melhor comunicação” é considerada reducionista. A comunicação, para ser eficaz, precisa estar alinhada com uma leitura complexa do cenário político e da sociabilidade digital, o que implica reavaliar não apenas as estratégias de discurso, mas também os próprios conteúdos que se pretende comunicar. Dito de outra forma, não basta dizer as coisas “da forma certa”, é preciso dizer coisas que sejam compreensíveis, mobilizadoras e legítimas para amplos setores sociais que hoje se sentem desamparados ou hostis em relação às instituições democráticas.
Podemos então concluir que há um acúmulo de tensões internas e externas que afetam a esquerda brasileira em múltiplas frentes. A incapacidade de mobilizar, a desconexão (simbólica) com a base popular, a ausência de estratégias eficazes de comunicação e a incompreensão do papel estruturante das redes digitais formam um conjunto de fatores que se retroalimentam, limitando o potencial de ação e enfraquecendo a oposição às forças autoritárias. A crítica da ex-parlamentar se apresenta, assim, como uma convocação à reconstrução, não apenas de estratégias eleitorais, mas da própria forma como a esquerda tem se inscrito na vida cotidiana, na política e na imaginação social.
Fillipi Nascimento é cientista Social. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper
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