A frente criminal do orçamento secreto
As emendas parlamentares são o principal motivo de conflito em relações já turbulentas travadas entre Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal. Uma frente de investigações criminais sobre corrupção de deputados no orçamento secreto pode enfraquecer o legislativo e empoderar o tribunal, dando fôlego para resistir a projetos de anistia, reforma ou revisão de decisões.
Mesmo em uma democracia saudável, é de se esperar que haja algum conflito entre judiciário e legislativo; afinal, um pode invalidar suas deliberações e outro pode decidir o futuro de seus membros. Há controles mútuos que, quando exercidos, podem gerar atritos naturais. Porém, a relação entre o Congresso e o Supremo Tribunal Federal tem se mostrado acentuadamente conflitosa, o que não deixa de ser um sintoma de uma democracia que não anda muito bem.
Nos últimos anos, o Supremo reconfigurou as imunidades parlamentares durante a Operação Lava Jato, reduzindo seu âmbito de proteção e criando uma jurisprudência que permitiu afastamento cautelar de parlamentares de seus mandatos. De outro, o Congresso ameaçou o tribunal com CPIs e pedidos de impeachment de ministros.
Mais recentemente, parte dos parlamentares embarcou em ataques diretos ao tribunal e outros buscam reverter suas decisões, seja através de propostas de anistia ou de projetos de lei. Uma agenda mais ousada busca reconfigurar as competências do tribunal mediante alteração da Constituição.
Porém, neste momento, o cerne do conflito entre Congresso e STF parece estar nas emendas parlamentares. Tramitam no tribunal, há quatro anos, ações que questionam emendas vultuosas, sem indicação dos deputados ou senadores solicitantes e sem indicação de destino do dinheiro, prática conhecida como orçamento secreto.
As ações estiveram sob a relatoria da ministra Rosa Weber e, em julgamento colegiado, o Supremo considerou a prática inconstitucional, por ser “incompatível com a forma republicana e o regime democrático de governo”, “à margem do direito e da lei”. O principal ponto da decisão exige transparência e publicidade no que se refere à destinação de recursos públicos, especificamente quem pedia a emenda e quem recebia o dinheiro.
Após aposentadoria da ministra Rosa Weber, o ministro Flavio Dino, diante de notícia de descumprimento da decisão do tribunal, promoveu tentativa de conciliação, propôs critérios, suspendeu pagamentos de algumas emendas, liberou outros. O Congresso parece seguir desafiando essas decisões.
Uma nova frente de atuação do tribunal, entretanto, pode mudar de vez esse jogo. Investigações e ações penais têm sido abertas, a pedido da Procuradoria-Geral da República, para apurar desvios de recursos das emendas parlamentares. Denúncias já foram apresentadas contra deputados do PL, por corrupção e associação criminosa.
Segundo a PGR, o esquema envolveria a destinação da emenda parlamentar a um determinado município, desde que parte do recurso fosse devolvida ao deputado padrinho da emenda. As denúncias estão sob relatoria do ministro Cristiano Zanin e já está agendado o julgamento que pode transformar os deputados do PL em réus.
Em outra frente, o ministro Gilmar Mendes determinou o foro do Supremo para investigações da Polícia Federal sobre desvio de emendas parlamentares no Ceará. O esquema parece ser o mesmo: um deputado apadrinha um município com envio de emendas, mediante o pagamento de uma comissão.
Os fatos que vão sendo revelados nas investigações criminais sobre o orçamento secreto explicam a resistência do Congresso em informar os nomes dos deputados e senadores que apadrinham emendas e para onde. Uma lista de nomes de parlamentares e o destino das emendas, diante de tantos indícios de malfeitos, seria um roteiro de investigações para a polícia e para a PGR. Porém, mesmo sem a identificação dos autores das emendas, as instituições de investigação têm conseguido traçar os caminhos do dinheiro.
Diante do volume de emendas parlamentares oriundas do orçamento secreto, uma investigação criminal poderá se tornar uma grande operação, com potencial para atingir dezenas de deputados. Um fato como esse pode reconfigurar o atual cenário de embate, empoderar o tribunal e, como efeito colateral, ainda fortalecer o Executivo na execução de suas políticas e nas negociações com o legislativo.
Eloísa Machado é coordenadora do projeto Supremo em Pauta, da Fundação Getúlio Vargas (FGV)
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