Mais uma vez o Estado de São Paulo se viu manchado de sangue, por obra da Polícia Militar comandada pelo secretário Guilherme Derrite e pelo governador Tarcísio de Freitas e sua política de segurança pública baseada no uso desproporcional da força, na violência desmedida, no descontrole policial, no despreparo e na vocação da polícia para matar, especialmente pobres, pretos e vulneráveis em geral. Desta vez foi o assassinato de um suspeito já rendido por dois PMs, durante operação na favela Paraisópolis, zona sul da capital, em ação brutal e ilegal.

As imagens, vindas da câmera acoplada ao colete de um policial militar, mostram quando os agentes atiram e matam o suspeito. São estarrecedoras. Igor Oliveira de Moraes Santos, de 24 anos, apontado como suspeito de tráfico de drogas, estava escondido na casa onde o homicídio ocorreu e foi alvo de disparos duas vezes. A primeira, quando estava agachado com os braços erguidos atrás de uma cama; na segunda, quando se levanta, com a mão direita erguida. Nesse momento ele foi alvo de mais disparos. Em ambas as situações, claramente não oferecia perigo aos agentes do Estado, até ser morto sem chance de defesa e sem dignidade.

A reação do governador mais uma vez foi de indignação, aquele tipo de indignação que sabemos ser protocolar. Afirmou que não vai tolerar ilegalidade. Mas é justamente sua tolerância com a ilegalidade a principal responsável pela repetição de episódios como esse, que estão longe de serem isolados. O crime de Paraisópolis não é exceção, e sim consequência direta de uma política de segurança pública e um comando da PM que premia a truculência, estimula a impunidade e vê as periferias como território inimigo.

Desde que Derrite assumiu a Secretaria de Segurança Pública, com o apoio irrestrito do governador Tarcísio de Freitas, a violência policial no Estado explodiu. Em 2023, o primeiro do governo de Tarcísio, foram registradas 504 mortes provocadas por policiais, 20% a mais do que no ano anterior. Em 2024, o número subiu para 814, mais de 60% de alta. No primeiro trimestre deste ano, último período contabilizado, foram 163.

No início do mês de julho, um marceneiro morreu após ser baleado atrás da cabeça por um PM de folga. Em novembro do ano passado, foram três homicídios causados diretamente pelas forças de segurança, incluindo uma criança de 4 anos. No mês seguinte, o país inteiro viu a cena de um rapaz sendo jogado da ponte por um PM.

Enquanto isso a impunidade prevalece. Segundo mostrou reportagem do jornal O Globo, citando um estudo de uma pesquisadora da USP, Débora Nachmanowicz, a punição a agentes envolvidos costuma ser rara e, em alguns casos, os policiais encontram-se trabalhando normalmente nas ruas depois de poucos meses dos episódios. Ela analisou 1.293 inquéritos e ações no Tribunal de Justiça paulista envolvendo mortes cometidas por PMs na capital e descobriu que 85% dos casos são arquivados, 10% resultam em apresentação de denúncia e menos de 2% levam à condenação. Você leu certo: menos de 2% dos PMs envolvidos em mortes acabam condenados em São Paulo.

Dos casos que foram apreciados pelo Tribunal do Júri, onde tramitam crimes contra a vida, menos da metade (46%) dos casos resultaram em sentenças condenatórias. A pesquisadora entrevistou jurados, que relataram que muitas vezes se sentem intimidados ao avaliar a condenação de PMs.

Derrite, ex-capitão da PM, atua como chefe de uma espécie de milícia institucionalizada. Em vez de propor políticas de inteligência, prevenção e valorização da vida, promove operações letais, concede carta branca para seus comandados e transforma cada bairro popular num campo de guerra. Ele próprio, que já ostentou em suas redes sociais imagens com armas e se vangloriou dos suspeitos que já matou, é símbolo de uma cultura de extermínio que tem força no presente mas é herança de um passado cultivado pela direita brasileira.

No início foi a chamada polícia mineira, embrião do que hoje conhecemos como milícia. Depois veio o “Esquadrão da Morte”, organização paramilitar surgida no fim dos anos 1960 de dentro da Polícia Civil, à época comandada pelo delegado Sergio Paranhos Fleury. Na década seguinte foi criada a Rota para combater opositores da ditadura. Com o tempo, a Rota passou a ser conhecida como o braço militar do “Esquadrão da Morte”, tamanhas as atrocidades cometidas pelos policiais, e a perseguir bandidos comuns. Depois, no Rio de Janeiro veio a Tropa de Elite, como ficou conhecido o Batalhão de Operações Especiais, mais conhecido como Bope. Do Rio, no fim dos anos 1970, espalhou-se pelo Brasil.

Todas essas experiências, cultuadas pela direita, adotaram a violência, a repressão, o assassinato indiscriminado e a violação de direitos humanos. A PM paulista segue essa tradição, incluindo a tradição de impunidade.

E o governador Tarcísio? Ele gosta de se exibir ora como um estadista, ora como um gestor, ora como um técnico sem vícios ideológicos.

Mas, na prática, age como um direitista extremista, bajulador de Jair Bolsonaro, e que diante da letalidade policial do Estado que dirige, silencia, omite, acoberta. Foi sua a decisão do governo estadual de não usar mais o modelo ininterrupto de gravação das câmeras corporais, por exemplo, algo questionado severamente por especialistas. No caso do assassinato em Paraisópolis, as imagens só foram captadas porque um policial decidiu ativar sua câmera, o que imediatamente aciona por bluetooth outros dispositivos num raio de 20 metros.

Para acabar com a violência policial, é preciso desmilitarizar a PM, rever o processo de formação dos policiais militares e adequar o currículo das academias a um novo conceito de policiamento que será, principalmente, de proximidade. É necessário, sobretudo, desenvolver a capacidade de inteligência não só da Polícia Civil, que faz a investigação, mas também da PM. Sem inteligência não há como combater o tráfico, hoje nosso principal problema de segurança pública.

E à sociedade, cabe perceber o quão falaciosa é a ideia difundida por herdeiros do bolsonarismo de que só a direita sabe enfrentar o crime, violência e a insegurança. O episódio de Paraisópolis mostra do que a direita realmente sabe: estimular a violência de agentes do Estado que deveriam proteger, e não matar.

José Dirceu é um político brasileiro, advogado, consultor e militante de esquerda com uma longa trajetória no cenário político do país. Autor de três livros – Abaixo a Ditadura (1998), Tempos de Planície (2011) e Zé Dirceu – Memórias volume 1. Iniciou sua militância política durante os anos de ditadura militar no Brasil, engajando-se no movimento estudantil, do qual foi líder entre 1965 e 1968. Foi deputado estadual por São Paulo, exerceu três mandatos de deputado federal, e ministro-chefe da Casa Civil durante o primeiro Governo Lula, em 2003. Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, seu secretário-geral e presidente por quatro mandatos