Dois amigos brasileiros vão a um cassino em Punta Leste. Um é o herdeiro de uma dinastia política, governou uma das principais cidades do Brasil e presidiu um importante partido de direita. O outro é um empresário do ramo da coleta de lixo, conhecido por conexões políticas influentes em diversos estados. Um daqueles casos em que o poder azeita a amizade. Naquela noite no começo de novembro de 2023, os dois circulam tranquilamente por um resort-cassino de Punta del Este, o maior da América do Sul. Os amigos não imaginam que, dali a um ano, um deles, o empresário, será alvo de uma ruidosa operação da Polícia Federal. O caso mira corrupção em ao menos cinco estados e estão sob suspeita contratos públicos de que o empresário é dono. Ele será preso e, nove dias depois, solto. A investigação deixará o partido do outro amigo, o político, em polvorosa — especialmente depois de chegar ao STF — porque diversos de seus quadros são, a exemplo dele, bem próximos do empresário, que também faz parte da sigla. A palavra de ordem na legenda passa a ser evitar ao máximo falar no caso, e deixar o assunto numa espécie de penumbra. Só que o ex-prefeito e o empresário não contavam que não há sombra que resista quando alguém acende a luz. Ainda mais luz de flash.
A foto acima foi registrada na noite de 2 de novembro de 2023. De costas, vestindo uma camisa polo preta e calçando um tênis com salto, está Antônio Carlos Magalhães Neto, o ACM Neto, ex-prefeito de Salvador e vice-presidente do União Brasil. A seu lado, de perfil, também vestindo polo preta, está o amigo empresário: José Marcos de Moura, o Rei do Lixo, integrante da direção nacional do partido de Neto e principal alvo da Operação Overclean. Ambos estão em volta de uma mesa de jogo do cassino do badalado resort Enjoy, na Meca uruguaia da jogatina.
Segundo ACM Neto, a viagem foi a lazer. O cassino frequentado pelo amigo político e o amigo empresário ocupa uma área de quatro mil metros quadrados, com 550 máquinas caça-níquel, 75 mesas e uma sala de pôquer (foto abaixo). Em 2023, ano da visita de ACM Neto e Marcos Moura, apostadores faturaram US$ 32,7 milhões por ali. No mês em que Neto e o Rei do Lixo estiveram por lá, a banca do resort uruguaio pagou US$ 2,3 milhões.
O gosto do Rei do Lixo por cassinos não é desconhecido das autoridades e desperta suspeitas até nos Estados Unidos. A agência de investigação do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos, que apura crimes transnacionais, comunicou a autoridades brasileiras que vai investigar movimentações financeiras e possível crime de lavagem de dinheiro no país por Marcos Moura.
Entre o material apresentado pelos americanos, conforme mostrou Malu Gaspar, estão evidências de remessas de Moura a cassinos de Punta del Este e conversas com funcionários sobre compras de relógios Rolex no Uruguai.
A data escolhida por ACM Neto e Moura para se mandarem para o Uruguai era simbólica, ao menos para o cassino. Naqueles dias, o Enjoy comemorava 26 anos de sua inauguração, em 1997, quando foi aberto e batizado como Conrad. A inspiração do negócio eram os grandes hotéis-cassino de Las Vegas.
Instalado de frente para a Playa Mansa, o imponente complexo se tornou um ícone de Punta del Este, sinônimo de jogo e badalação no balneário uruguaio. O Enjoy (foto abaixo) tem 292 quartos, incluindo suítes luxuosas, sete restaurantes e bares, spa e 18 salas de conferências e eventos com capacidade para cinco mil convidados. Clube noturno e beach club também estão entre as atrações. As diárias, cobradas em dólar, atualmente variam entre R$ 1,1 mil e R$ 1,4 mil.
Jantar regado a vinhos
Antes de irem ao cassino, ACM Neto e o Rei do Lixo foram vistos desfrutando da boa mesa do restaurante mais bacana do hotel. É o St. Tropez, comandado pela chef uruguaia Magali O’Neil, que já recebeu estrelas da música como Shakira, Roberto Carlos, Luis Miguel, Charles Aznavour e Julio Iglesias. O ex-presidente do Uruguai Luís Alberto Lacalle Pou e o craque uruguaio Edinson Cavani, do Boca Juniors, também conhecem o tempero de O’Neil. A cozinha da chef é especializada em gastronomia italiana moderna, massas caseiras e risotos com influência mediterrânea. A adega do St. Tropez tem mais de 1.500 rótulos e o restaurante frequentemente promove “winedinners”, ou seja, jantares que harmonizam vinhos à comida. O preço desses eventos costuma ser de US$ 120 por pessoa.
Na noite em que ACM Neto e Marcos Moura estavam no resort, para sorte dos amigos baianos, era dia de winedinner. O enólogo chileno Marcelo Papa, diretor técnico da vinícola Concha y Toro, fez uma apresentação sobre a estrela da noite: o Don Melchor 2021, cuja garrafa pode custar até R$ 1,4 mil. O vinho foi servido junto com o prato principal, cordeiro cozido a baixa temperatura com crosta de brioche, flor de hibiscos, mostarda e açúcar mascavo em rodelas de batata trufada e terra de cogumelo Porcini.
O jantar teve como aperitivo macaron al Nero di Seppia com lagostins cítricos e pistache, servido com vinho Amelia Chardonnay. A entrada era risoto venere com texturas de queijos parmigiano reggiano, roquefort e camembert, acompanhado de magret de pato defumado com cedro e ervas aromáticas. Para beber, um Marques, da Casa Concha Heritage 2020/2021. Como sobremesa, a pedida era mousse de chocolate de origem Uganda com coração de frutas do bosque, crocante de amêndoas, nibs de cacau e quenelle de sorvete de creme.
Depois de um jantar como esse, foi a vez de esticar as pernas no cassino do hotel.
Procurado pela coluna, ACM Neto disse por meio de sua assessoria de imprensa que a viagem com Marcos Moura a Punta del Este foi a lazer, mas não respondeu se estava hospedado no resort Enjoy. Também não disse quem mais fazia parte do grupo que viajou. O ex-prefeito ressaltou que nunca negou ser amigo do empresário.
Operação Overclean
A Operação Overclean, que colocou a Polícia Federal no encalço de Marcos Moura, o “Rei do Lixo”, mira desvios de emendas parlamentares e suposta corrupção em contratos de prefeituras em Bahia, São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Tocantins. A operação já teve duas fases ostensivas, ambas ordenadas quando o caso ainda tramitava na Justiça Federal da Bahia.
Como mostrou detalhada reportagem do PlatôBR em janeiro, a investigação começou mapeando suspeitas de fraude em licitações na unidade baiana do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), órgão federal controlado em suas diferentes instâncias por apadrinhados de políticos e que se tornou um dos principais sumidouros de verbas de emendas.
O Rei do Lixo foi preso na primeira fase da Overclean, deflagrada em 10 dezembro de 2024, pouco mais de um ano após a viagem do empresário com ACM Neto a Punta del Este. Foi solto nove dias depois, em 19 de dezembro, por ordem da desembargadora Daniele Maranhão, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1).
Além da prisão de Moura, um dos lances cinematográficos da Overclean é atribuído ao empresário: a apreensão de R$ 1,5 milhão em dinheiro vivo dentro de um jatinho em Brasília. A aeronave havia decolado de Salvador e pousado na capital. Os investigadores acreditam que o dinheiro seria entregue a políticos – seria um delivery de propina. Com eles havia ainda uma planilha com uma relação de contratos públicos. A viagem, sustentam os policiais, foi feita a mando do Rei do Lixo.
Como mostrou o PlatôBR, as conexões de Marcos Moura não param no partido de ACM Neto. Suas conexões são bem ecléticas — e até perpassam os poderes da República. Autoridades a par do caso ouvidas pela reportagem de janeiro dizem que ele construiu, nos últimos anos, amizades muito sólidas não apenas com membros do Legislativo, mas também com gente graúda no Executivo e no Judiciário.
Na primeira fase da Overclean, um vereador de Campo Formoso, no interior da Bahia, jogou uma sacola com R$ 220 mil em dinheiro vivo pela janela quando percebeu que seria preso pela Polícia Federal. O vereador é primo do deputado federal baiano Elmar Nascimento, do União Brasil, um dos aliados mais próximos de ACM Neto.
Foi quando as investigações esbarraram no nome de Elmar, detentor de foro privilegiado, que o caso foi tirado da primeira instância da Justiça Federal na Bahia e enviado ao STF. A PF encontrou no cofre de Marcos Moura uma escritura de compra e venda de um apartamento de uma empresa de uma filha dele ao deputado.
No Supremo, as apurações da Overclean correm desde janeiro sob sigilo nas mãos de Kassio Nunes Marques — a contragosto da PF, que queria ver Flávio Dino como relator do caso, mas não convenceu o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, a redistribuir o processo.