O governo brasileiro oficializou nesta quarta-feira, 23, sua entrada como parte interessada no processo movido pela África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça, em Haia. Poucas horas depois, divulgou uma nota em que acusa o governo de Benjamin Netanyahu de cometer “violações sistemáticas de direitos humanos e humanitários no Estado da Palestina”.
A posição do Brasil é vista por especialistas como coerente com sua política externa, mas chama atenção por vir num momento de tensão com os Estados Unidos. Em meio à ameaças de Donald Trump de impor tarifa de 50% sobre as importações de produtos brasileiros e às críticas à postura do governo Lula em temas globais, a adesão ao processo pode acentuar o distanciamento entre os dois países, uma vez que Israel é um dos aliados prioritários de Washington.
Para o cientista político Thomas Heye, professor do Instituto de Estudos Estratégicos da UFF (Universidade Federal Fluminense), a adesão do Brasil ao processo não representa um gesto isolado nem uma ruptura com Washington, mas se insere em uma corrente global de críticas à atuação de Israel.
“Um conjunto de países cada vez maior está condenando o Estado de Israel pela excessiva crueldade e violência desnecessária, agora já não mais só na Faixa de Gaza, mas também na Cisjordânia. Já passou de qualquer ideia de retaliação. Estamos falando de limpeza étnica e problemas de outra ordem”, diz Heye.
O professor reconhece que o movimento não deve ajudar na reaproximação com os Estados Unidos. “Israel conta com o apoio dos EUA, e sabemos que os americanos não lidam bem com rejeição, especialmente no atual governo. Mas esse não é um movimento só do Brasil”, observa. Na segunda-feira, 25 países construíram uma declaração conjunta exigindo o fim imediato da guerra em Gaza, condenando o bloqueio humanitário e os ataques a civis, inclusive crianças. Para Heye, isso dilui o risco de o Brasil sofrer um isolamento diplomático.
O ex-embaixador Rubens Barbosa, que representou o Brasil em Washington e Londres e hoje preside o Irice (Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior), avalia que a adesão formal do Brasil ao processo movido pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça não traz novidade e está alinhada com a política externa histórica do país. “É a posição clássica do Brasil, não altera nada. O Brasil já tem publicamente essa posição”, afirma. Ele destaca que o Brasil não liderou o movimento, apenas se somou a um grupo de países, o que reduz riscos de custo diplomático neste momento.
Barbosa reforça que o anúncio do Itamaraty reafirma o posicionamento já expresso pelo governo brasileiro, com foco no fim da guerra e no reconhecimento da situação que “a corte (de Haia) chama de genocídio”. “Não há novidade. O presidente, o ministro das Relações Exteriores já falaram isso. A nota está de acordo com a política externa brasileira e não deve impactar a atual tensão comercial com os Estados Unidos”, diz.
Por que o Brasil entrou no processo
Na nota divulgada nesta quarta-feira, 23, o governo brasileiro afirma que está em fase final de submissão de uma intervenção formal no processo movido pela África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça. A decisão, segundo o Itamaraty, se fundamenta no dever dos Estados de cumprir com o Direito Internacional e com a Convenção contra o Genocídio, diante da plausibilidade de que os direitos dos palestinos à proteção contra atos de genocídio estejam sendo “irreversivelmente prejudicados”.
O texto elenca uma série de violações atribuídas a Israel, como massacres de civis durante entregas de ajuda humanitária, vandalismo em sítios religiosos, ataques à infraestrutura civil, inclusive de organismos da ONU, e o uso da fome como arma de guerra. “A impunidade mina a legalidade internacional e compromete a credibilidade do sistema multilateral”, afirma a nota, que também condena a anexação de territórios e a expansão de assentamentos ilegais. Para o Itamaraty, “não há espaço para ambiguidade moral nem omissão política”.