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Ainda há punições pendentes, defende presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos

Procuradora Eugênia Gonzaga teme que, ao tratar apenas de ocultação de cadáveres, o Supremo Tribunal Federal facilite a impunidade de torturadores. Ela também defende a abertura de arquivos que seguem secretos. País precisa de uma 'justiça de transição', diz

Presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Eugênia Augusta Gonzaga
Foto: Reprodução/Agência Senado

A presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, procuradora Eugênia Augusta Gonzaga, demonstra preocupação quando avalia as recentes interpretações do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a possibilidade de responsabilização de agentes do Estado que cometeram crimes na repressão contra opositores da ditadura militar no Brasil (1964-1985). As dúvidas vêm da percepção de que, em vários momentos, o país perdeu a chance de estabelecer uma verdadeira "justiça de transição" devido a uma interpretação indevida da Lei da Anistia, de 1979. Com o passar dos anos, muitos agentes da ditadura morreram sem nunca ter sido julgados por seus atos. A comissão é um órgão de Estado, vinculada ao governo federal, e tem por atribuição localizar e reconhecer os mortos e desaparecidos durante a ditadura. Extinto pelo governo de Jair Bolsonaro, o colegiado voltou a funcionar no início do atual mandato de Lula.

Em fevereiro deste ano, o plenário do STF acompanhou o voto do ministro Flávio Dino e decidiu analisar a aplicação da Lei da Anistia, de 1979, para os casos de crimes cometidos durante a ditadura e que continuam no presente, os chamados "crimes permanentes", como a ocultação de cadáveres. Com esse entendimento, os recursos relacionados ao tema passam a tramitar com "repercussão geral", quando a corte fixa um entendimento que precisa ser seguido pelas instâncias inferiores. A nova interpretação do Supremo abre caminho para a punição dos responsáveis pelo desaparecimento de vítimas do governo militar.

A decisão do STF foi tomada no meio da onda que se formou em torno do filme "Ainda estou aqui", que rendeu o Oscar de melhor filme estrangeiro a Walter Salles e que revelou para o mundo o brilhantismo de Fernanda Torres no papel de Eunice Paiva, viúva do deputado federal Rubens Paiva, cassado e morto pelo regime, e mãe do escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva. "Porque só agora, né? Mas tudo bem, antes tarde do que do que mais tarde", reclama Eugênia em entrevista ao PlatôBR. "Tenho muito medo de que o Supremo, batendo o martelo de que a Lei da Anistia não vale para esses crimes (permanentes), acabe entendendo que, por outro lado, os crimes instantâneos, que são o contrário dos permanentes, sejam considerados como anistiados e suscetíveis de prescrição", afirmou a procuradora, referindo-se, por exemplo, aos torturadores.

Para ela, a tese acolhida pelo STF é tímida e já havia sido referendada em 2008, quando o tribunal decidiu pela extradição do major do Exército uruguaio Manuel Juan Cordero Piacentini, acusado de participar do sumiço de onze pessoas e do sequestro de um bebê durante a Operação Condor, conjunto de ações desencadeadas pelos governos no Cone Sul, na década de 1970, para reprimir as organizações de esquerda. Em 2009, a maioria da corte brasileira optou pela extradição pedida pelos governos da Argentina e do Uruguai, rejeitando a tese levantada pelo então ministro Marco Aurélio Mello, que considerava os crimes de desaparecimento como homicídio e não como sequestro, um crime continuado. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Em fevereiro, o plenário do STF referendou a manifestação do ministro Flávio Dino de reconhecer que crimes como a ocultação de cadáver têm o caráter continuado e, portanto, não devem ser perdoados pela Lei da Anistia. A senhora entende que, a partir de agora, pode haver responsabilização pelos crimes da ditadura?
Por que só agora? Mas tudo bem, antes tarde do que mais tarde. Eu ainda vejo isso com apreensão e não consigo me alegrar porque essa tese é a mais tímida das teses. Foi a primeira coisa que nós, do Ministério Público, defendemos, ainda em 2008. O próprio Supremo acolheu essa tese na extradição de um torturador uruguaio que estava aqui no Brasil. Então, se era para falar isso, por que não julgaram lá atrás? Eu sei que é horrível essa posição de insatisfação, mas eu estou há muito tempo nessa estrada e foram muitas tentativas. E agora que a gente tem a chance de avançar realmente, vem essa decisão tão minguada, apenas para as ocultações de cadáveres. O pior é que eu não sei como isso vai ser julgado, mas eu tenho muito medo de que o Supremo, batendo o martelo de que a Lei da Anistia não vale para esses crimes, acabe entendendo que, por outro lado, os crimes instantâneos, que são o contrário dos permanentes, sejam considerados como anistiados e suscetíveis de prescrição.

Mas a lei já não anistia os crimes instantâneos?
O nosso problema no Brasil é muito mais até que a Lei de Anistia, que nem fala expressamente que anistiou torturadores. Essa ideia decorre de uma interpretação negociada. Em 2010, a decisão do Supremo fala exatamente isso. Foi um pacto pela redemocratização entender que a Lei de Anistia abrangia, também, entre os crimes conexos, os crimes praticados para defender o Estado. Agora, em todas as entrevistas que eu ouço, toma-se como certo e acabado que a Lei da Anistia também se referiu aos torturadores. Como eu falei, essa é a constatação mais simplista: dizer que os crimes permanentes não foram atingidos pela Lei da Anistia.

Por quê?
Esses crimes de ocultação jamais deveriam ter sido considerados como abrangidos pela Lei de Anistia e, realmente,  é uma pena que o Ministério Público Federal tenha demorado tanto para entrar com essas ações. Mas a gente compreende que o crime contra a humanidade, praticado pelo Estado contra os seus cidadãos e cidadãs, causa fissuras que atingem não só governos, mas também famílias. Muitas delas, por exemplo, não concordavam com a luta de quem desapareceu. Então, quando crimes tão graves acontecem em nome dessas fissuras, dessa situação de de comoção interna, é muito normal que o país demore muito tempo a se recuperar, muito tempo a aplicar a legislação. E é por isso que esses crimes têm que ser considerados não suscetíveis de anistia ou de prescrição. Isso está na decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e não me parece que isso tá sendo observado pelo STF até o presente momento.

O que esperar do STF?
Nós já estamos em 2025 e a decisão da Corte é do final de 2010. Ela ocorreu meses depois daquela decisão do Supremo que está ainda pendente de análise. (Nesse caso, a procuradora se refere à ADPF 153, apresentada pela OAB, que contesta o primeiro artigo da norma e está parada na corte há mais de uma década). Eu tenho a impressão de que tem uma coisa não escrita e não falada que está se comemorando finalmente que a lei de Anistia não atinge os crimes continuamente praticados. Aí teremos os casos de estupro que vão ficar de fora, formação de quadrilha armada e o próprio caso do Rubens Paiva que inclui os crimes de homicídio por meio cruel, formação de quadrilha armada e fraude processual porque eles falsificaram atestados. Não tem o que se comemorar porque finalmente um quarto daquilo que se colocou em discussão será agora acolhido. Realmente eu estou muito apreensiva com tudo isso e, principalmente, com esse silêncio sobre a decisão da CIDH.

O que é necessário para que o Brasil possa virar a página em relação à ditadura militar?
É difícil você virar uma página sem resolver os problemas e é isso que estão tentando fazer. O que o Brasil precisa é de justiça de transição como um todo. É um conjunto de medidas que o país precisa adotar para poder fazer uma transição segura de um regime autoritário, de um regime sem leis, para o estado democrático de direito. O Brasil indenizou parte das vítimas, financeiramente. Foi importante, mas não pode ser só isso. É preciso abrir arquivos, revelar o destino dos corpos. Até hoje, não se tem isso. Tem que responsabilizar os autores, tem que sinalizar que certas pessoas não podem ficar impunes, porque quando você sinaliza que certas pessoas podem ficar impunes, principalmente as pessoas ligadas à segurança pública, você continua dando esse sinal para frente. E é o que acontece hoje. Você ainda tem tortura e desaparecimentos constantes. É uma política de Estado de desaparecimento das pessoas. Por quê? Porque você nunca teve esse tipo de responsabilização. Então você já tem até um judiciário acostumado a encontrar desculpas, a encontrar saídas. Trata-se de uma organização de justiça que está pronta para encontrar uma desculpa para a violência dessas pessoas.

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