Ela nasceu na Favela do Vidigal, no Rio de Janeiro, foi levada com dias de vida pela mãe para Poté (MG), onde seria criada pela avó. Adolescente, a mãe voltaria para buscá-la e levá-la para viver em Paris, onde havia se casado. O enredo já seria uma história de vida suficientemente pesada para qualquer um, mas Alessandra Montagne ainda passaria por episódios de racismo e violência doméstica. Hoje, é a chef brasileira de maior sucesso na Europa e abrirá, no fim do ano, seu terceiro restaurante em Paris. Depois do Nosso e do Tempero, desta vez comandará o maior dos quatro restaurantes que o Louvre abrirá dentro do museu — um convite feito a ela por Alain Ducasse.
A trajetória épica, contada em detalhes ao Lisboa Connection, videocast do canal Amado Mundo com entrevistas com personagens que estão entre o Brasil e Europa, é encarada com a consciência da superação.
A seguir, os principais trechos da entrevista. Assista à íntegra em vídeo ao fim do texto.
Sua história é diversa em cenários e experiências, do Rio de Janeiro a Minas Gerais e Paris. O que na sua cozinha tem do seu passado e presente?
Quando a gente cozinha, necessariamente volta ao passado. Mas, quando abri o meu primeiro restaurante na França, fazia bistronomia francesa, nada de comida brasileira. Nem pão de queijo. Só ao fazer as pazes com o Brasil é que as coisas gostosas e boas, que fazem parte de mim, vieram naturalmente. Comecei a ousar e me colocar para os meus clientes e restaurantes, algo que não fazia antes. Lembrar que sou brasileira e dar mais valor a isso.
Quando isso mudou?
De 2012 para cá. O Brasil era complicado porque eu o associava à minha dor. A cozinha brasileira era bloqueada em casa. Depois que gravei um documentário no interior de Minas, chamado “Planet Chef”, o Brasil entrou na cozinha e decidi fazer o menu de degustação com coxinha.
Você se apresenta como brasileira ou “brasileira francesa”?
Foram 22 anos no Brasil e 26 na França. Hoje, sou realmente franco-brasileira. Penso, sonho e falo em francês o dia inteiro. É cansativo? Sim. Mas me acostumei a me expressar, virei adulta e entendi a minha história e a minha vida na França. No Brasil, estava só com a cabeça fora da água tentando sobreviver.
Que momento você disse: “Vou ser chef”?
Nunca tive essa pretensão. Quando cheguei à França não falava francês, e a cozinha era o meu modo de me comunicar. O pessoal dizia, “você cozinha tão bem, deveria abrir um restaurante”. Escrevi uma carta para duas escolas de cozinha, fiz entrevistas, mas não eram o meu perfil. A menina que me recebeu foi uma italiana, Antonella, até hoje minha amiga. Tivemos uma conexão muito forte e, quando eu contei tudo que fazia, ela falou “quer fazer o buffet do aniversário do meu marido de 40 anos?”. Saí de lá com um contrato.
Qual foi a importância de passar pela Médéric e como foi seu contato com Alain Ducasse?
Eu cozinhava antes de entrar, mas fazia uma cozinha familiar. Não conhecia o vocabulário e as exigências da cozinha profissional, era algo mais intuitivo. Eu sabia que tinha muito a aprender. Quando perguntavam “sabe fazer?”, falava “não”. Mesmo que soubesse, porque assim o chef me mostrava a maneira dele. E o Alain Ducasse foi no meu primeiro restaurante, no primeiro ano de abertura. Eu sabia quem era de nome, mas não o conhecia de rosto. Entrou um senhor, comeu, agradeceu, disse “muito gostoso” e foi embora. Depois disso, comecei a receber convites, elogios, apareceu a imprensa e eu nem tinha quem cuidasse disso. Um dia vieram me apresentar o chef Alain Ducasse e era o “senhorzinho” que veio comer. Foi muito engraçado.
Em um mundo machista como o da cozinha, como você se sentiu enquanto mulher, mãe e negra, recebida por chefs homens?
Na época, era muito misógino. Agora as coisas mudam, as pessoas tomam mais cuidado. Eu me lembro, quando estava na escola, havia uma lista de 30 restaurantes onde podíamos estagiar e em 20 dizia “não é para as mulheres”. É muito complicado. Mas, depois de tudo o que vivi com os homens que me maltrataram e insultaram, não importa. Eu tinha casca grossa desde pequena. Aprendi a me vestir com plumas de canário e as coisas escorregam por mim.
Como você desenvolveu essa proteção?
Com oito dias de idade, meus pais decidiram que não queriam uma criança. Minha mãe me levou para a casa dos pais, no interior de Minas Gerais, e me deixou. Só quando eu tinha onze anos, meu avô recebeu um telegrama da minha mãe anunciando que estava vindo até Poté para me conhecer. Foi terrível porque todo mundo ficou muito feliz enquanto eu me questionava “por que ela não escreveu antes?”, “por que ela não voltou?”. Quando nos encontramos não teve carinho, abraço, nada. Eu não a aceitei e ela não me aceitou. Minha mãe já morava na França há cerca de cinco anos e queria que eu fosse uma criança perfeita como as que ela via. Logo me colocou num colégio interno adventista, em São Paulo, para me educar. Só tinha criança rica, branca, que já tinha ido para a Disney. Eu era como um extraterrestre. Eles tinham um modo de falar entre eles que eu não entendia. Descobri o que é ser negro no Brasil lá.
O que é ser negro no Brasil?
É uma questão de você não ter lugar na alta sociedade. Tudo é questionado. Há dois anos, já morando na França, fui a São Paulo para um projeto como convidada. Me colocaram em um hotel e levei comigo uma jornalista e uma fotógrafa francesas. Paguei a passagem e o hotel delas e, na hora do café da manhã, as meninas passaram e me barraram. “A senhora está hospedada? Pode mostrar a identidade?”. Eu não acreditei. Nunca ninguém me tratou com discriminação na França, lá abriram os braços para mim. Eu devo tudo que eu sou hoje a esse país.
Você vai cozinhar no Louvre em alguns meses. Há uma obra de arte ou algo no museu que te inspira?
Absolutamente tudo. O que posso contar é que sempre me coloco nos lugares onde cozinho. Sou brasileira e francesa, vão ter as minhas origens nessa cozinha. O Louvre pediu um restaurante personalizado e será o meu restaurante, a minha cozinha, com a minha foto na entrada. O transatlântico do Louvre é meu, foi a expressão que a direção do Louvre usou comigo.
Que conselhos você daria para meninas que ambicionam se tornar chefs de cozinha bem-sucedidas como você?
Estudar e não esquecer que a cozinha é um trabalho manual. Tem que fazer e refazer até ficar perfeito. Você trabalha até ficar perfeito. Para mim, trabalho, férias, final de semana, é tudo igual. Eu misturo tudo. Cada vez que a sorte me procura, ela me acha trabalhando.