O STF e o anticonstitucionalismo digital
O termo constitucionalismo digital tem sido usado para descrever o processo de transformação profunda dos direitos fundamentais e do controle do poder diante do impacto que o mundo digital traz para a vida cotidiana. A transformação da noção de poder trazida pelas novas tecnologias de informação seria tão ampla que o poder popular e do Estado estariam sendo mitigados diante do poderio das big techs. Isso seria capaz de redefinir o que se entende por constitucionalismo.
Os mais pessimistas apontam que elementos do mundo digital têm sido propulsores de erosão da democracia liberal, do que se poderia chamar, na verdade, de um anticonstitucioalismo digital.
Para alguns estudiosos, dentre outros fatores, a forma de comunicação na era da informação potencializou o sentimento de insatisfação com a política tradicional, reforçado pelas bolhas digitais (viés de confirmação), e deu amplitude à disseminação de mensagens falsas que, aliadas à política do escândalo, erodiram pilares fundamentais da política e das eleições: informações e políticos confiáveis.
Para outros autores, além do regime de informação estabelecer regras de vigilância dos usuários e submetê-los a um tipo de controle algorítmico, as transformações produzidas seriam tão grandes que impactaram a própria noção de democracia através de mudanças na esfera pública, seja na criação e produção de informação, seja no processo de tomada de decisão. Haveria uma aparente noção de liberdade e de autonomia, mas as informações e as decisões estariam sendo falseadas e manipuladas. A tecnologia seria responsável pela complexidade opaca que impediria, a todos nós, a percepção ampla de seus efeitos.
São múltiplas as leituras sobre o impacto que as novas tecnologias e a transformação do processo informacional trazem para a democracia, com preocupação acentuada em relação às fake news. O problema, porém, como se percebe, vai muito além de fake news e seu impacto restrito no processo eleitoral. Como alerta Morozov no livro Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política, “(...) o problema não são as fake news, e sim a velocidade e a facilidade de sua disseminação, e isso acontece principalmente porque o capitalismo digital de hoje faz com que seja altamente rentável – veja o Google e o Facebook – produzir e compartilhar narrativas falsas que atraem cliques”.
Essa avaliação obscura da relação entre democracia e comunicação digital foi reforçada com o anúncio, pelo dono e fundador da Meta, de mudanças na política da empresa, seja no processo de checagem, seja na “política de conduta de ódio”. Politicamente, o anúncio foi visto como um alinhamento entre a Meta e Trump, entre as grandes empresas de tecnologia e a ultradireita. Não restam dúvidas de que o cenário que se desenha é de degradação democrática.
Juridicamente, o anúncio da Meta traz ainda mais urgência à necessidade de regulamentação das redes. Países têm enfrentado dificuldades em aprovar medidas legais adequadas, diante do poderio e do lobby feito pelas grandes empresas de tecnologia. No Brasil, o caso é até caricato: às vésperas da votação do chamado PL das Fake News, Google e Meta entraram na briga e o caso foi enquadrado como possível abuso de poder por parte das empresas.
No Tribunal Superior Eleitoral, o debate sobre regulação das redes e combate à desinformação tem sido desenvolvido desde 2018. No Supremo, além de investigações que revelaram o papel da desinformação na tentativa de golpe, há uma grande disputa sobre o Marco Civil da Internet e a responsabilidade de provedores por conteúdos veiculados nas redes sociais. No julgamento, que já foi iniciado em 2024, ministros se mostram preocupados com a imunidade que as big techs almejam.
Não à toa, as empresas buscam trazer o debate para o âmbito individual, subjetivo, do usuário manifestando sua opinião, ao invés do que realmente é objeto de atenção das instituições: uma indústria automatizada de produção de desinformação com propósito político, ideológico e econômico.
Diante dos últimos acontecimentos, seja na revelação de que uma estrutura de desinformação foi usada para atacar as eleições e promover um golpe, seja no anúncio feito pela Meta, o julgamento do STF sobre o alcance da responsabilidade dos provedores e redes sociais se torna central para desarticular o anticonstitucionalismo digital.
Eloísa Machado é coordenadora do projeto Supremo em Pauta, da Fundação Getúlio Vargas (FGV)
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