O encontro aconteceu em um lugar carregado de significados e escolhido pelo artista: a Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. Rodeado por estantes, livros e memórias, o ex-ministro da Cultura revisita suas mais de seis décadas de carreira, nas quais cantou baião, reggae, samba e rock, sempre guiado por inquietações estéticas e políticas. Quebrou paradigmas na música e no afeto. Viveu o amor com liberdade, como ele próprio descreve ao falar de suas amorosidades plurais, antes de consolidar sua união com Flora, sua companheira de vida. A conversa com o titular desta coluna foi para o canal Amado Mundo, no YouTube (youtube.com/@amadomundo), e, a pedido de Gil, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. De veia filosófica e identidade cultural pulsante, o poeta, que completou 83 anos na semana passada, começou a conversa pelo fim: a morte.

Você lembra quando começou a refletir sobre a morte? Essa canção sua dos anos 70, “A morte” reavivada pela gravação de Gal que veio à tona recentemente, já mostra essa reflexão com você bem jovem.

Eu acho que foi quando eu comecei a refletir sobre o viver, tudo o que diz respeito a essa condição vivente que nós temos. Quando, efetivamente, a morte de pessoas conhecidas, de pessoas próximas, de parentes apareceu na vida. Eu me lembro quando as minhas tias mais velhas começaram a desaparecer. Eram pelo menos três ou quatro delas, e o desaparecimento delas provocou, naturalmente, um processo de reflexão sobre aquilo.

Me lembro bem da minha avó Lídia — tia de meu pai, mãe de criação dele também — e que tinha feito parte do processo de educação meu e da minha irmã. Me lembro quando ela agonizou, quando entrou em processo de finalização da vida. Ela teve uma agonia muito visível, muito perceptível.


E falando de vida: você passa quase duas horas e meia de pé na turnê. Quem assiste nem imagina sua idade. Você sai exausto dos shows?

Sinto tanto o cansaço quanto o descanso. Tem troca com o público, com os músicos, com a memória. É paradoxal, mas me canso e descanso ao mesmo tempo.

A Flora é uma grande gestora — da turnê e das últimas décadas da sua carreira. Foi fundamental para que você se tornasse o primeiro artista nacional a deter 100% dos direitos autorais. Como foi esse processo?

A nossa geração começou a reivindicar tratamento mais justo. Flora abraçou essa causa. Foram seis, sete anos de litígio com três ou quatro editoras. No fim, recuperamos todas as músicas. Ela se dedicou a isso como missão pessoal e familiar.

Essa carona que você deu em Salvador foi transformadora na sua vida, né? Conta, para quem não sabe, essa história.

A história da Flora, da chegada da Flora na minha vida. Ela trabalhava em São Paulo, já adolescente, com 16 para 17 anos. Foi trabalhar numa loja de moda, e no final do segundo ano do trabalho dela, ganhou uma viagem. Ela tinha a opção de ir para o Ceará ou para a Bahia, e acabou escolhendo ir para a Bahia. Era um prêmio que a empresa, a loja, estava dando a ela, e ela foi para Salvador.

Poucos dias depois de ter chegado lá, ela foi assistir a um show da Baby Consuelo, de quem já era fã. Eu fui a esse show também, por tudo o que a Baby significava para mim, junto com os Novos Baianos e toda aquela coisa. Acabamos nos encontrando no final do show, porque ela estava com alguém que era conhecida minha. Minha filha, Nara, estava comigo — ainda muito adolescente — e alguém, não sei se a Nara ou essa outra pessoa, sugeriu que déssemos uma carona para ela.

Flora estava hospedada em um hotel que ficava no caminho da minha casa. E assim foi feito: demos uma carona para a Flora. No meio do trajeto, falamos das programações típicas da nossa turma naquele período — ir à praia, aos shows, fazer as coisas. Marcamos de nos encontrarmos na praia do Porto da Barra no dia seguinte. E assim também foi feito.

O que tantas décadas de vida e experiência te ensinaram sobre o amor? A pergunta pode soar piegas, mas vinda de um poeta, tenho certeza que a resposta carrega sabedoria.

Olha, eu acho que o próprio ofício de fazer canções e narrativas nessas canções, sobre a minha vida e a vida em geral… essas canções, muitas delas, dão conta dessa minha percepção sobre o amor.

Várias canções que eu fiz — as canções que eu fiz para Belina, minha primeira mulher; depois, o meu convívio com a Nana e muito do que trocamos, trocávamos, de percepção sobre o amor em nossos trabalhos, tanto o meu quanto o dela. Depois, com Sandra, que veio acrescentar fortemente a dimensão amorosa ao meu viver. E, por fim, a Flora, que já estamos indo para 40 anos de união. E o aprendizado é esse: foi conviver com todas elas da maneira que foi possível, com a bondade que foi possível manifestar nesse tempo, o carinho, o apreço, o gosto de vivermos juntos durante os vários períodos com elas. É isso. Não tem… aprender a amar amando, não há escapatória. Amor é exercício, é ato permanente.

E, evidentemente, isso também se estende para além das minhas relações pessoais com elas. Se estende para os outros tipos de devaneios sobre amorosidade, no sentido geral. O amor é mais difícil que a morte, já dizia um filósofo. 

A monogamia já foi regra. Depois, sua geração flexibilizou isso. Hoje há muitas formas de se viver o amor. Essas questões sempre foram conversadas?

Sim. Era geracional. Falávamos disso entre nós — das pluripossibilidades do afeto, do amor, do sexo. Em gerações anteriores, isso era tabu. Já a minha teve de reaprender a amar, a defender novas práticas.

E você e Gal, como foi?

Ah, acontecia de termos uma atração mútua, uma aproximação, até níveis de envolvimento em função desses quereres nossos. Ela era muito amorável. Tinha um sentimento muito fluídico sobre essa coisa da amorabilidade, e tudo isso era facilitado por esse sentimento de expansão, de abertura, de exploração.Tudo isso estava na nossa relação mútua, na nossa relação pessoal. Trabalhamos juntos, demos nossa contribuição própria como duas pessoas próximas a esse processo todo. Nos amávamos muito.

E como estava sua relação com a Nana nos últimos anos? Em 2019, ela disse que era preciso dar uma chance ao Bolsonaro. Dizem que foi mais para proteger a filha do que por convicção. Também disse que você, Chico e Caetano eram puxa-sacos do Lula.

Era a mesma Nana — falastrona como a mãe, às vezes descuidada. Vivi com ela dois anos. Me acostumei com sua língua solta, da mãe e da filha. Sempre vi como impulso explosivo. Fui ao velório dela com muita consternação. Sempre gostei dela do jeito que era.

Você virou tema: turnê, série no Globoplay, exposição no Ibirapuera. Já pensou na sua biografia?

Eu acho que esses fragmentos todos de manifestação, entrevistas aqui e ali, documentação através de registros de shows, de viagens, daquilo, daquilo outro,  acho que isso dá conta de um bom pedaço dessa condição, dessa dimensão biográfica. Isso tem se afunilado ultimamente nessa proliferação de documentos feitos sobre mim.

Eu não tenho propriamente um gosto, não tenho uma intenção, um desejo de eu mesmo me debruçar sobre uma biografia, uma autobiografia. Eu acho que isso dá conta — esses documentos todos, essa entrevista que estamos fazendo aqui… dá conta disso. São fragmentos dessa conversa que podem estar eventualmente por aí.