As pesquisas de opinião apontam insatisfação dos cidadãos americanos e brasileiros com suas vidas, a despeito do bom desempenho de suas economias. Desempenho revelado pelo crescimento do PIB, criação de empregos, aumento no valor médio das remunerações insuflado pela expansão da massa de rendimentos.

Em artigo na Folha de São Paulo, Paul Krugman não esconde sua perplexidade diante do desgosto dos cidadãos americanos com as realizações exibidas nos dados que festejam as proezas da economia de Joe Biden.

Há que indagar as razões que promovem esse descompasso entre as cifras positivas da economia e as percepções negativas de contingentes significativos das sociedades.

Um vídeo distribuído pelo WhatsApp apresenta declarações de cidadãos americanos, políticos conservadores, senhoras e senhoritas idem. Começamos com Donald Trump:

Eu amo nossos trabalhadores de colarinho azul, e me considero, de certa formam ser um trabalhador de colarinho azul.”

O apresentador do vídeo:

“Nós amamos e respeitamos o povo trabalhador deste país, embora eu tenha certeza de que eles nem sempre sentem o amor.”

Trabalhadoras e trabalhadores:

“Preciso de ajuda para pagar meu aluguel.

Depois de 25 anos e meio.

Eu ganho US$ 8,99 por hora.

Abandonei a faculdade.

Eu tinha que fazer, mas não tinha condições de pagar.

Minha mãe não tinha condições de pagar.”

“Eu trabalho sete dias por semana agora.

“Não tenho condições de me aposentar por causa da saúde.

Preciso de cuidados infantis como se precisasse do meu próximo seio.

Tenho dois diplomas.”

“Tenho empréstimos estudantis e bacharelado e 14 anos
de experiência.

Eu não deveria ter que vir pedir comida.

Estou vivendo de salário para pagar a dívida estudantil.

Se eu moro em um país que diz que é o número um, por que me sinto no fundo do barril?”

O Apresentador:

“Alguém sabe o que pode ajudá-los?”

Comentários dos Conservadores:

“Assistência médica de graça, creche paga pelo governo.”

“Faculdade gratuita, alimentação saudável do governo, educação infantil, creche universal, emprego garantido com salário de família, licença médica e familiar adequada, férias remuneradas e segurança na aposentadoria. Vocês todos estão mortos né?”

“Se isso não é socialismo, não sei o que é.”

“Todos os itens da lista de desejos socialistas, da lista de desejos socialistas e globalistas.”

“Paraíso da fantasia socialista para todos. Assassinato de empregos, agenda socialista esmagadora de almas.”

“Quer dizer, olá, Venezuela. Eles querem levar sua caminhonete.”

O Apresentador:

Então está aí. Não podemos dar aos nossos heróis trabalhadores e cuidar suas necessidades básicas, porque isso é socialismo.”

Vou correr o risco de reapresentar minha falíveis percepções. A marca registrada da sociedade de massas capitalista-competitiva é a busca pela diferenciação da riqueza e dos estilos de vida, diferenciação que abriga o consumo, as concepções e os “modos de ser” dos indivíduos socializados. Desgraçadamente, ao instigar os impulsos dos indivíduos para alcançar os hábitos, gostos e gozos dos bem aquinhoados, a socialização competitivo-capitalista promove as angústias daqueles enredados nas malhas da desigualdade. A maioria não consegue realizar seus desígnios, atolada no pântano da sociedade de massas.

Os ganhos propiciados pela valorização da riqueza financeira sustentam o consumo dos ricos e, simultaneamente, aprisionam as vítimas da crescente desigualdade nos circuitos do crédito. No afã desatinado de acompanhar os novos padrões de vida, a legião de fragilizados compromete uma fração crescente de sua renda nas encrencas do endividamento.

No mundo em que mandam os mercados da riqueza os vencedores e perdedores se dividem em duas categorias sociais: na cúspide, os detentores de títulos e direitos sobre a renda e a riqueza gozam de “tempo livre” e do “consumo de luxo”; na base, o dependentes crônicos da obsessão consumista e do endividamento, permanentemente ameaçados pelo desemprego e, portanto, obrigados a competir desesperadamente pela sobrevivência.

Em sua configuração atual, o capitalismo escancara a incapacidade de entregar o que promete aos cidadãos. A celebração do sucesso colide com a exclusão social; o desemprego estrutural promovido pela transformação tecnológica e pela migração da manufatura para as regiões de baixos salários tromba com a igualdade de oportunidades.

A pressão competitivo-aquisitiva desencadeia transtornos psíquicos nos indivíduos-utilitaristas consumidores. Os trabalhos de destruição da subjetividade iluminista são realizados por uma sociedade que precisa exaltar o sucesso econômico e abolir o conflito. Nesse ambiente competitivo, algozes e vítimas das promessas irrealizadas de felicidade e segurança assestam seus ressentimentos contra os “inimigos” imaginários, produtores do seu desencanto. Os inimigos são os outros: os imigrantes, os pobres preguiçosos que preferem o bolsa família e recusam a vara de pescar do trabalho, comunistas imaginários etc..

As normas sociais da concorrência utilitarista que guiam o sujeito pós-moderno levam à morte o indivíduo iluminista de Adam Smith, aquele consciente de sua liberdade e empenhado na preservação de sua autonomia. Ele foi substituído por um indivíduo depressivo em seus insucessos e frustrações, sempre preocupado em retirar de si, com doses maciças de Prozac, a essência de todo o conflito.

A rejeição pós-moderna é mais profunda porque, de forma devastadora, erodiu os sentimentos de pertinência à mesma comunidade de destino, suscitando processos subjetivos de diferenciação e (des)identificação em relação aos “outros”. E essa recusa do outro vem assumindo cada vez mais as feições de um individualismo tosco, agressivo e antirrepublicano.

Na Genealogia da Moral, Nietzsche não hesita em afirmar que “o grande perigo para os homens são os indivíduos doentios, não os maus, não os predadores. São os desgraçados, os destruídos, os vencidos de antemão – são eles, são os fracos que mais solapam a vida entre os homens, que envenenam e colocam em questão da maneira mais perigosa nossa confiança na vida e nos homens.”

A “psicologização” utilitarista da existência, diz Elisabeth Roudinesco, avassalou a sociedade e contribuiu para o avanço da despolitização, filha dileta do que Michel Foucault e Gilles Deleuze chamaram de “pequeno fascismo da vida cotidiana”, praticado e celebrado pelo indivíduo ressentido, ao mesmo tempo protagonista e vítima de um processo social que não compreende. O pequeno fascismo desliza sorrateiro para a alma de cada indivíduo sem ser percebido, ainda que continue a simular a defesa dos sacrossantos princípios da família, dos costumes e da religião.

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autor de vários livros, entre eles “Valor e Capitalismo” e “Os Antecedentes da Tormenta”, e ocupou cargos públicos como o de secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e o de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo