O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal, é conhecido pela maneira direta e nada empolada como fala sobre tudo, dos temas comezinhos aos mais espinhosos da República. Na semana passada, falando a uma plateia repleta de políticos e pesos pesados da economia nacional em Roma, defendeu que o Brasil ainda precisa vencer o mal do patrimonialismo e da corrupção. É uma ferida na qual ele toca há tempos, sem abusar das meias palavras.
Ao assumir o comando da corte, em setembro de 2023, Barroso centrou seu discurso na defesa do diálogo depois de um período de duros conflitos no topo da pirâmide do poder. Anunciou que trabalharia pela “conciliação nacional”. O Judiciário havia passado por intensos ataques de figuras proeminentes da classe política, incluindo o agora ex-presidente da República Jair Bolsonaro, e de uma parcela significativa de seus apoiadores. O 8 de janeiro ainda ecoava forte.
O tal esforço de pacificação ainda está em curso. O ápice da crise passou, é bem verdade, mas o Supremo segue sob artilharia pesada. A origem da última ofensiva é também a Praça dos Três Poderes, mais especificamente o Congresso. O petardo, desta vez, veio na forma de um pacote de propostas legislativas que pretendem limitar os poderes do tribunal. Nesta entrevista exclusiva ao PlatôBR, com seu conhecido didatismo, Barroso minimiza o problema, mas reforça o que disse dias atrás em sessão plenária: considera impróprio que congressistas modifiquem o funcionamento das instituições por razões políticas.
O presidente do STF é igualmente direto ao tratar de outros temas delicados, entre eles a alegação de que a corte tem se excedido e usurpado atribuições de outros poderes. Sobre o auge da crise com Bolsonaro, Barroso afirma que, logo após o resultado das urnas em 2022, a obediência dos militares à Constituição foi crucial para que o Brasil não sofresse um golpe de estado. O ministro também fala do futuro próximo do polêmico inquérito das fake news, uma das armas usadas pelo Supremo – e por Alexandre de Moraes em particular – para manter os bolsonaristas na mira. Para ele, o papel do inquérito já foi cumprido. Eis a entrevista.
Como o senhor lida com a crítica, recorrente, de que o Supremo tem exercido seus poderes sem autocontenção?
Com naturalidade. Um tribunal que julga algumas das questões mais divisivas da sociedade estará, inevitavelmente, sujeito a divergências e críticas. O Supremo não é uma Corte que pratique o ativismo judicial, que é o oposto da autocontenção. Pelo contrário, são raros os casos de criação judicial de direito. O que o Supremo de fato tem é um certo protagonismo, fruto do desenho institucional traçado pela Constituição. O Supremo Tribunal Federal brasileiro tem um papel um tanto diferenciado em relação a outras supremas cortes do mundo, por várias razões: uma Constituição abrangente, que cuida de temas que em outros países são deixados para a política, a possibilidade de acesso ao tribunal por ações diretas, que podem ser propostas por numerosos atores institucionais e privados, e o fato de que as sessões são transmitidas pela televisão aberta.
O senhor acreditou que, em algum momento, o Brasil poderia sofrer um golpe de estado?
Houve momentos de grande preocupação, com o aumento da retórica autoritária e ataques a instituições. As investigações em andamento apontam para isso, mas temos que aguardar o encerramento das apurações e a coleta das provas. Na minha avaliação, o comprometimento das Forças Armadas com a Constituição, na hora decisiva, foi fundamental para que não tivéssemos uma ruptura no Brasil.
O senhor, em particular, temeu por sua segurança? Achou que poderia ser alvo de alguma medida de exceção?
Todos os ministros do STF foram ameaçados e tiveram que ampliar e reforçar sua segurança. As ameaças geraram preocupação principalmente pela integridade das instituições. Mas é inegável que alguma coisa mudou muito para pior após 2018. Eu gosto de lembrar que fui à final da Copa do Mundo de 2014, no Maracanã, com minha mulher e meus filhos, sem qualquer tipo de segurança. Na abertura das Olimpíadas, em 2016, também no Rio, fomos Teori, eu e meu filho, igualmente sem segurança. Hoje em dia isso se tornou impensável. Alguma coisa aconteceu no Brasil que extraiu o pior das pessoas.
O Supremo já se recompôs dos ataques sofridos ao longo dos últimos anos, que culminaram com o fatídico 8 de janeiro?
Do ponto de vista físico, o Supremo Tribunal Federal se recompôs em três semanas. Sob a liderança da ministra Rosa Weber, no dia 1º de fevereiro o plenário estava inteiramente reconstruído e demos início ao ano Judiciário de 2023. Do ponto de vista moral e institucional, a Justiça é um valor transcendente e o ataque a um prédio não é capaz de abalá-la.
Acredita que ainda levará muito tempo para o país superar a polarização política que tanto divide os brasileiros?
A existência de visões diferentes em relação a temas políticos é a marca das sociedades democráticas. O que é problemático é o extremismo, que traz consigo a intolerância e a violência. Isso nós precisamos enfrentar. O mundo das redes sociais e aplicativos de mensagens facilitou muito a circulação da desinformação, do ódio e da não aceitação do diferente. Nós precisamos resgatar a civilidade no Brasil e fazer com que pessoas voltem a se tratar com respeito e consideração, mesmo na divergência. A democracia tem lugar para liberais, conservadores e progressistas. Só não há espaço para quem não aceite as regras do jogo.
Nos bastidores, alguns ministros da Corte defendem que o chamado “inquérito das fake news” seja encerrado. Isso vai acontecer, de fato? E qual deve ser, na sua opinião, o destino do que foi reunido nos autos?
O chamado “inquérito das fake news” preencheu um papel muito importante no enfrentamento da extrema direita antidemocrática no Brasil, num momento em que se agravavam os ataques às instituições. Agora, creio que boa parte do seu papel já foi cumprido e, portanto, já é possível ter um desfecho à vista. É que quase tudo o que precisava ser apurado, já foi. Todo o material vai agora ser examinado pelo procurador-geral da República, a quem caberá arquivar ou oferecer denúncia diante de eventuais crimes. O PGR já declarou que irá se debruçar sobre esses inquéritos após as eleições.
O ministro Alexandre de Moraes, seu colega, é acusado com frequência de agir com mão pesada nas investigações que miram bolsonaristas. Como avalia o papel dele?
O ministro Alexandre de Moraes tem desempenhado seu papel com firmeza e responsabilidade, em conformidade com a Constituição. Ele conduz as investigações de maneira técnica e tem recebido apoio do tribunal nas suas ações.
Avançam no Congresso propostas para limitar os poderes do Supremo. O senhor enxerga essas iniciativas como vingança? O que pensa sobre elas?
É papel do Congresso discutir leis para aprimoramento e fortalecimento das instituições democráticas. E o Supremo Tribunal Federal é passível de erros e está sujeito a críticas e a medidas que levem a melhorias. Mas considero que o tribunal tem cumprido o seu papel e tem servido bem ao país. Nós decidimos as questões mais divisivas da sociedade, e por isso é natural algum grau de desconforto. Não existem unanimidades. Porém, não me parece próprio modificar o funcionamento de instituições permanentes por divergências circunstanciais ou com base nos ciclos eleitorais.
Diante das dificuldades na relação com o Congresso, é no STF que o Palácio do Planalto tem conseguido resolver questões importantes como, por exemplo, a das emendas. O tribunal, afinal, virou a tábua de salvação do atual governo?
O Supremo Tribunal Federal não atua contra ou a favor de nenhum governo. Temos procurado, sempre que há impasses e somos chamados a decidir, conversar e promover consensos. Mas, quando não é possível, decidimos conforme a Constituição, independentemente de quem seja favorecido ou contrariado por nossas decisões.
As sucessivas derrotas impostas à Operação Lava Jato trouxeram a sensação de que a corrupção voltou a ser aceita e tolerada no Brasil. O que fazer — e o que o Poder Judiciário, especialmente, pode fazer — para que a impunidade não prevaleça?
Eu diria que o enfrentamento à corrupção, dentro da Constituição e das leis, deve ser um objetivo permanente de qualquer democracia. E as democracias nos países em desenvolvimento sofrem mais com certos desvios de conduta que se naturalizaram. Portanto, eu acho que esta é uma luta constante e continuada, que não se confunde com a Lava Jato.
Recentemente, o senhor disse que o STF teve uma atuação “controvertida” no combate à corrupção. A que se referia?
Eu tenho a percepção de que houve momentos em que a sociedade tinha a expectativa de uma atuação mais rigorosa do Supremo, ao lidar com casos de corrupção. A maioria do tribunal, no entanto, entendeu que houve vícios insanáveis relativamente ao devido processo legal e mesmo à imparcialidade. Em alguns casos, penso que houve, mesmo. Em outros, minha visão não prevaleceu, como na possibilidade de execução das penas após a decisão de segundo grau. A vida num colegiado significa conviver com a divergência e respeitar as posições da maioria.
A suspensão da plataforma X no Brasil por ordem do Supremo suscitou críticas diversas, parte delas no sentido de que a decisão escancara um ambiente de insegurança jurídica no país. Faz sentido?
Nenhum. A suspensão do X é uma história bem simples. Não tem nada a ver com liberdade de expressão, mas sim com o Estado de Direito, porque a legislação brasileira prevê que as empresas estrangeiras que operam no Brasil devem ter representante no país e devem respeitar as decisões judiciais. O que o X fez? Para escapar do cumprimento das ordens judiciais brasileiras, retirou os representantes. Portanto, praticou um ato ilegal e não tinha mesmo condições de funcionamento no Brasil. Não tem nada de particular em relação ao X. Valeria para qualquer empresa.
O Brasil sofreu neste ano uma enchente trágica e tem vivido as consequências de queimadas e de uma seca sem precedentes que, dizem os especialistas, se devem aos danos ao meio ambiente. Como a Justiça pode contribuir para frear a destruição dos biomas do país?
O Judiciário tem dois tipos de papel nessa matéria. Do ponto de vista jurisdicional, isto é, das matérias que lhe cabe julgar, deve levar em conta a emergência climática, dar preferência às ações ambientais (uma das metas do Judiciário para 2024 já determina isso) e aplicar a Constituição e a legislação vigente, que têm boas normas a respeito. Do ponto de vista de sua própria administração, o Judiciário deve tomar medidas como a que estamos recomendando a todos os tribunais: fazer um inventário das emissões de carbono, adotar medidas de redução das emissões e tomar providências para a compensação das emissões que não podem ser evitadas. Aqui no STF já temos o inventário em curso, já tomamos medidas de redução. Já contratamos usinas fotovoltaicas que responderão por 90% do consumo de energia, fim das garrafas plásticas, diminuição da impressão, abastecimento dos carros com etanol, recolhimento seletivo de lixo. E, para compensação, firmamos acordo com a Novacap (a companhia de urbanização de Brasília) para plantio, aqui no bosque ao lado do tribunal, de 5.270 árvores.
Ao decidir sobre temas como aborto, cotas e porte de maconha, o Supremo está invadindo competências que deveriam ser do Congresso? Por que isso acontece?
O Supremo sempre age para garantir direitos fundamentais e proteger preceitos constitucionais. Quando o Congresso não consegue produzir consenso sobre algumas matérias e editar a consequente legislação, ou quando há omissão que afeta direitos fundamentais, o Judiciário é chamado a agir. Essa não é uma invasão de competência, mas uma forma de garantir que a Constituição seja cumprida.
Faz sentido, na sua opinião, discutir anistia para os envolvidos nos ataques do 8 de janeiro?
Anistia é um tema afeto ao Congresso, nos termos da Constituição. Portanto, é lá que esse assunto tem que ser debatido. A alma brasileira é uma alma pacífica e conciliadora, e o fato de uma investigação complexa se prolongar contraria um pouco essa alma brasileira. Mas me parece difícil falar de anistia antes da conclusão dos casos. Esses julgamentos estão em curso e a gente não pode deixar de julgar e condenar os eventualmente culpados, porque, do contrário, de uma próxima vez que alguém perder a eleição, vai achar que pode fazer a mesma coisa. Então, as pessoas em geral revelam um certo cansaço, porque esse julgamento prolonga um pouco uma situação de tensão e de divisão política. Mas eles são inevitáveis e, portanto, a gente tem que continuar e concluir os trabalhos. E aqui tem uma observação muito importante que passa despercebida: houve 1.450 denúncias contra invasores, denúncias oferecidas pelo procurador-geral da República. Dessas, cerca de 220 eram crimes graves, de gente que quebrou móveis, quadros e estragou obras de arte. Os outros 1.200 são crimes considerados mais leves, de quem incentivou o golpe nos quartéis. E aí se ofereceu o acordo de não persecução penal, que garante a liberdade, mas prevê consequências bastante brandas: uma multa de R$ 5 mil, dois anos sem utilizar redes sociais e um curso sobre democracia a ser dado pelo Ministério Público. Só 500 pessoas aceitaram o acordo, ou seja, cerca de 700 pessoas preferem ser condenadas a fazer esse tipo de acordo. Portanto, ou estão muito desinformadas ou há um radicalismo político de preferir ir preso do que fazer um acordo nessas circunstâncias.
Por que uma parcela importante da população desaprova o Judiciário, e o que fazer para reverter esse quadro?
É muito importante na vida do direito não confundir popularidade com legitimidade. Vou lhe dar um exemplo: eu, como presidente do Supremo, relator de um caso, determinei que fossem retirados de uma reserva indígena 5 mil garimpeiros. Havia 5 mil invasores e mil indígenas. Se fizer uma pesquisa de opinião naquela região, vou perder de 5 a 1, e, mesmo assim, ninguém tem dúvida de que essa foi a decisão legítima à luz da Constituição. Portanto, a importância de um tribunal constitucional não pode ser medida em pesquisa de opinião pública. Ainda assim, segundo o Datafolha, nós temos 49% de apoio. É um número surpreendentemente bom porque nós decidimos matérias que desagradam muita gente.
Assim como os demais poderes, o Judiciário com alguma frequência se vê diante de deslizes éticos de alguns de seus integrantes. O que falta para que os juízes sejam exemplos de ética e probidade?
O Judiciário precisa continuar aprimorando seus mecanismos de controle interno, e a ética deve ser um valor fundamental para todos os servidores públicos, incluindo juízes. É essencial fortalecer a formação ética e a transparência, e o Conselho Nacional de Justiça e o Supremo Tribunal Federal atuam nesse sentido.