KUALA LUMPUR – Na reunião de Lula com Trump tudo pode acontecer, e por isso é preciso manter todos os alertas ligados. Está nessa toada a expectativa do gabinete do presidente brasileiro em relação ao encontro dele com o colega americano, previsto para o final tarde deste domingo em Kuala Lumpur, capital da Malásia.
Lula vai para a reunião sem ter uma ideia clara de como ela será, um cenário pouquíssimo comum em compromissos do tipo entre chefes de Estado. Normalmente, encontros assim são meticulosamente preparados pela diplomacia. Tudo é, quase sempre, coreografado com a devida antecedência.
Dado o perfil atípico de Trump, porém, no caso concreto da reunião na Malásia auxiliares de Lula repetem que é alta a dose de imprevisibilidade em relação não apenas aos assuntos que o republicano procurará abordar, uma vez que o roteiro da conversa não foi detalhadamente negociado, mas também quanto aos passos seguintes – e, claro, aos resultados concretos que podem vir do tête-à-tête.
Clara mesmo só há uma coisa: a torcida do Planalto para que Trump mantenha o comportamento que passou a adotar no mês passado, em Nova York, quando nos bastidores da Assembleia Geral da ONU falou rapidamente com Lula. Àquela altura, ao discursar logo após o brasileiro, o presidente americano disse ter havido uma “química” entre os dois.
Depois, foram vários os sinais de arrefecimento da crise política e diplomática deflagrada pelo tarifaço e pelas sanções a autoridades envolvidas nas investigações e nos processos que miram Jair Bolsonaro e seus aliados. Lula e Trump se falaram por telefone. Houve também, para ficar em apenas mais um exemplo, uma reunião considerada positiva do chanceler Mauro Vieira com o secretário de Estado americano, Marco Rubio.
No governo predomina o entendimento de que, se Trump não ressuscitar no encontro a pauta levada a Washington pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), especialmente aquela em que tenta forçar um perdão para o ex-presidente, já terá sido uma vitória importante de Lula. Um sinal de que a página foi virada.
Tirando perdão a Bolsonaro e revisão das condenações e das penas aos envolvidos na tentativa de golpe, praticamente todos os demais assuntos são passíveis de negociação ou de conversa, sustentam interlocutores do presidente.
O entendimento peremptório do próprio Lula é que há questões que são simplesmente inegociáveis. Se Trump retomar o discurso pró-Bolsonaro e a tentativa de forçar um passo atrás nos processos da trama golpista tocados pelo STF ou mesmo uma reabilitação política do ex-presidente para deixá-lo apto a concorrer nas eleições do ano que vem, o petista responderá que quanto a isso não há o que conversar.
A resposta, nesse caso, já está pronta: será a de que o Brasil não negocia a autonomia das suas instituições nem a democracia. Lula dirá que os condenados por tentativa de golpe, Bolsonaro incluído, tiveram e continuam tendo direito a defesa em processos que cumpriram todas as fases previstas na lei brasileira. Perdoar representaria uma flexibilização dos valores democráticos que o governo não topa em nenhuma hipótese.
Por outro lado, se a ideia for discutir regras econômicas, comércio bilateral ou mesmo a exploração de minerais críticos, a mesa estará livre. Com ressalvas pontuais em um ou outro tema. Como, por exemplo, na própria questão das terras-raras: o presidente entende que são bem-vindos todos os países que quiserem explorar os minerais, desde que concentrem toda a cadeia de processamento no Brasil, de forma a gerar empregos e contribuir para o desenvolvimento de conhecimento e tecnologia no setor dentro do país. Caso o interesse dos americanos seja repetir em território brasileiro experiências malsucedidas com terras-raras como as da Ucrânia e da Indonésia, nada feito.
Sobre outros temas espinhosos que opõem Washington e Brasília, como a guerra em Gaza e a situação da Venezuela, há espaço para conversar – o que não significa, necessariamente, que haja disposição de Lula para mudar a maneira como enxerga esses assuntos, sobre os quais já se manifestou publicamente inúmeras vezes.
A despeito da mudança na relação desde o abraço e a “química” na ONU, o ambiente é de certa desconfiança. Interlocutores do presidente lembram que o governo Trump já avançou em algumas negociações relevantes com outros países e depois acabou voltando atrás de forma radical. Ou seja: uma conversa hoje não garante compromisso amanhã.
Um exemplo envolve a própria Venezuela. Não faz muito tempo, a Casa Branca chegou a designar um negociador para conversar com o regime de Nicolás Maduro, com aval até para estabelecer parcerias. Agora está ameaçando uma intervenção no país – o último movimento, para além dos ataques a embarcações suspeitas de ligação com o narcotráfico na costa venezuelana, envolve o anúncio do envio de um potente porta-aviões para a região.
Se há desconfiança, há também esperança de que o cenário possa ser o mais próximo possível do ideal. E aí entram avaliações que consideram a possibilidade de o presidente americano ter realmente chegado à conclusão de que o melhor mesmo é voltar atrás e devolver a relação com o Brasil ao seu eixo histórico de duzentos anos de amizade e entendimento.
Nessa linha, o gabinete de Lula avalia que alguns fatores podem ter feito Trump repensar a pertinência do tarifaço e das sanções a autoridades brasileiras. Um deles é a constatação de que o capital político de Jair Bolsonaro, beneficiário principal das exigências apresentadas no ato do anúncio do tarifaço, já não é o mesmo de antes, enquanto o próprio tarifaço acabou melhorando os índices de aprovação de Lula.
Outro fator levado em consideração é a pressão do setor privado, que fez chegar a Trump uma sucessão de queixas, todas elas relacionadas aos reflexos das sobretaxas sobre seus negócios e sobre a economia americana de maneira geral, com impacto no preço de produtos como café. Por fim, há um elemento de ordem geopolítica: a Casa Branca pode ter se dado conta de que esticar a corda com o Brasil pode jogar o país nos braços de sua arquirrival China.
Tudo isso, porém, são cenários. Como nunca antes, a diplomacia brasileira, conhecida por sua competência, está longe da confortável posição de ter os próximos passos previamente delineados. O estilo de Trump, que por vezes não deixa claro nem para seus auxiliares mais próximos o que está pensando ou o que vai fazer, pôs no escurso as equipes que lidam com a preparação do encontro.
Até o fim da tarde deste sábado em Kuala Lumpur, início da manhã em Brasília, não havia plena certeza nem sequer sobre o formato da reunião – se assessores dos dois lados poderão participar, se será uma conversa apenas entre os presidentes com a ajuda de seus tradutores, se haverá câmeras ou não.
Do lado brasileiro, havia certa preocupação com a possibilidade de Trump querer abrir a primeira parte da conversa para a imprensa, um modelo que ele costuma adotar com frequência nas audiências na Casa Branca e que já rendeu constrangimentos públicos, de formas diferentes, aos presidentes Volodymyr Zelensky (Ucrânia) e Cyril Ramaphosa (África do Sul).
Se não pode prever nem muito menos controlar o que Trump fará, o staff brasileiro tem condições de garantir que a reação de Lula a uma atitude inesperada do presidente americano seja a mais inteligente possível. E aí entra uma certeza: a de que o petista, acostumado a conversas difíceis e negociações em condições assimétricas desde os velhos tempos de sindicalista, não só vai tirar de letra qualquer provocação como ainda pode sair por cima de uma eventual tentativa de Trump de constrangê-lo.
