Biógrafo da TV Globo, foco de sua trilogia sobre a história da emissora, o jornalista Ernesto Rodrigues vai contar no novo volume da obra, a ser lançado no fim do ano, como a emissora se relacionou com figuras do poder. Jair Bolsonaro e Lula estão entre os protagonistas de histórias apuradas por Rodrigues.
Em entrevista ao canal Amado Mundo (youtube.com/@amadomundo), o escritor antecipou um dos lances entre Bolsonaro e a Globo, alvo frequente do ex-presidente e da sua militância. Rodrigues contou que Bolsonaro pediu apoio político aos Marinho, donos da emissora, “sem o menor pudor”.
O jornalista também falou sobre o apoio de Roberto Marinho à ditadura e de toda a mística que envolve essa fase da história da Globo e do país. Uma história marcada por altos e baixos, com destaque para o papel da imprensa durante a pandemia.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista ou assista, ao fim deste texto, às duas partes da entrevista ao Amado Mundo:
Como foi a relação de Bolsonaro com a Globo?
O Bolsonaro é uma pessoa tosca. Inclusive, há um relato no livro de que ele pediu explicitamente apoio aos irmãos Marinho. Falou diretamente com o João Roberto: “Queria que vocês me apoiassem”. Foi aqui no Rio, em um encontro com eles. Ele pediu sem o menor pudor. É aquela história: dizem que ele é legal porque é autêntico, mas a autenticidade não é necessariamente uma virtude. Eles disseram que não, que iam cobrir do jeito que tinha que ser.
Na pandemia, quanto da cobertura do Jornal Nacional se deve ao compromisso jornalístico e quanto foi enviesamento por ser o governo Bolsonaro?
A situação criada pela pandemia e pelo próprio governo Bolsonaro, com as besteiras e absurdos que ele cometeu, permitiu que a TV Globo fizesse jornalismo do jeito que deve ser. Até porque seria um absurdo a emissora, depois de ter forçado tanto a mão na questão da corrupção, na cobertura da Lava Jato e na distorção do formato tradicional do Jornal Nacional, depois de anos desfigurando o modelo clássico de telejornal noturno de rede, simplesmente deixar de fazer jornalismo de uma hora para outra. A Globo vinha de um período de aposta cega na luta contra a corrupção, nos promotores da Lava Jato e no juiz Moro. Não era possível que, de uma hora para outra, ela simplesmente parasse de fazer jornalismo.
A Globo perseguiu o Lula? A Globo protege o Lula?
O Lula é um problema para a Globo desde que ele era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Ele foi censurado, a voz dele não entrava. Quando era impossível ignorar o protagonismo dele em algum fato do dia, a Globo colocava um texto na voz de um locutor ou repórter, na narração em off. Teve também a época em que o Lula foi candidato contra o Collor. No processo eleitoral que resultou na eleição do Collor, a cobertura não teve grandes problemas. A Globo não foi acusada de nada grave, com exceção do Brizola, que era um velho inimigo do Roberto Marinho.
Quando o Lula virou presidente, o contexto era diferente. Ele pegou a Globo num momento de crise. Muita gente não acredita, mas o Grupo Globo esteve perto de falir. Não por causa da TV Globo, que sempre foi a galinha dos ovos de ouro, mas por causa da holding, a GloboPar, que se endividou em dólar. O dólar explodiu na véspera da eleição do Lula e a dívida se tornou impagável.
Houve uma conversa entre o Palocci e um alto executivo da Globo em 2002. Esse executivo era o Evandro Guimarães, que era o vice-presidente institucional. A Globo avisou à cúpula, no dia seguinte à vitória do Lula, que pediu concordata naquela tarde. E deixou claro que aquilo não era contra o novo governo. Na verdade, a Globo teria que ter pedido concordata durante o segundo turno, mas não fez isso porque sabia que seria usada pela campanha do Serra como argumento: “Nem a TV Globo aguenta a eleição do Lula”. A relação foi, digamos, civilizada até o mensalão. A partir dali, começou a se deteriorar.
E o que tem de fantasia na relação do Roberto Marinho com a ditadura militar?
De fato, ele foi um dos empresários de mídia que foi aliado de primeira hora do golpe. É fato que ele colaborou, no sentido editorial, com a ditadura. Agora, não é fato que ele tenha sido o único, para começar a história. Outra coisa também: que o sucesso da TV Globo pudesse ser atribuído ao fato de ele apoiar os militares. É como se não tivessem existido Walter Clark, o Boni e tantas outras pessoas que revolucionaram a televisão brasileira nesse período, a partir dos anos 70. O Roberto Marinho estava começando um negócio com a Tupi decadente como concorrente. E houve a famosa CPI do grupo Time Life, que investigou uma pedalada jurídica feita para permitir o envio de dinheiro americano à TV Globo. Isso ficou comprovado. Não era permitido, pela lei brasileira, que grupos estrangeiros investissem em empresas jornalísticas. Para contornar isso, foram feitos dois contratos que driblavam essa restrição. Existe também uma lenda de que o grupo Time Life teria controlado a linha editorial da Globo, mas isso não aconteceu. Eles não tiveram nenhuma participação no conteúdo da emissora. O Time Life era um grupo editorial que tentou entrar no mercado de televisão, mas não deu certo. Quando o Roberto Marinho parou de ter dinheiro para pagar, houve uma crise. Ele quase perdeu a emissora. A Globo quase foi vendida para Walter Moreira Salles, pai, porque o Roberto Marinho não conseguia pagar a dívida com os americanos.
A TV Globo mudou a estratégia: decidiu resgatar a TV aberta, deixando de lado a aposta total no Globoplay. Isso ficou claro com o remake de Pantanal, por exemplo. Como você vê a Globo nesse momento?
Ela está perseguindo exatamente esse objetivo de se adaptar a esse novo cenário. Mas acho que é mais do que isso. Independentemente da tela, do modo de transmissão, o que está em questão é o tipo de conteúdo que a TV aberta faz. Na minha opinião, a principal característica é que ela é uma experiência coletiva. Ou seja, o fato de existir uma grade de programação… Você até pode, se perder o horário, assistir depois no Globoplay. Mas originalmente e essencialmente é uma experiência coletiva, no sentido de que, no dia seguinte, você vai trabalhar, vai encontrar pessoas e todo mundo assistiu ao mesmo programa. Isso cria muito mais do que uma simples experiência estética ou individual de ver algo. Estamos num momento de explosão em sentido contrário: segmentação extrema, mais do que customizar, uma atomização. E isso vai no sentido oposto, mas também não é muito sustentável.