Como o Centro de Informações do Exército (CIE) dispensava formalidades, como bater continência para um oficial superior, o então capitão Paulo Malhães foi direto ao ponto, ao entrar: “Podem escavar e dragar o país inteiro que não irão achá-lo”. Dois anos depois da morte do ex-deputado Rubens Paiva durante sessão de tortura na carceragem do Destacamento de Operações de Informações do Exército, o DOI, no Rio de Janeiro, entre os dias 20 e 22 de janeiro de 1971, Malhães garantiu aos seus comandantes que a missão de desaparecer com os restos mortais da vítima para sempre, sem deixar rastros, estava cumprida.
Desde 2014, ano em que Malhães revelou o episódio a este repórter, o Ministério Público Federal (MPF) trava uma queda de braço com os advogados dos acusados para reabrir o caso e punir os responsáveis. Até aqui, a defesa tem levado a melhor. Porém, no mês de lançamento do filme “Ainda estou aqui”, que conta o drama da víuva de Paiva, Eunice, após a morte do marido, o processo que corre no Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a andar. E pelas mãos do ministro Alexandre de Moraes, relator do caso. Ele deu um despacho no dia 25 de novembro, abrindo vista à Procuradoria-Geral da República (PGR).
A medida, aparentemente de rotina, foi recebida com desconfiança pela defesa. Ao provocar a PGR no momento em que a morte de Rubens Paiva volta ao noticiário, o ministro estaria buscando um caminho para autorizar o prosseguimento da ação, trancada há dez anos por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em outra frente dessa guerra judicial, em parecer assinado no dia 21 de novembro, o procurador-geral da República, Paulo Gonet Branco, pediu a extinção de uma reclamação ajuizada pelos acusados no mesmo Supremo.
Pombo-correio
Ex-deputado, cassado após o golpe de 1964, Rubens Paiva foi preso em sua casa, no Leblon, Zona Sul do Rio, em 20 de janeiro de 1971, por agentes do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa). Eles acreditavam que Paiva seria “pombo-correio” entre exilados políticos no Chile e militantes da luta armada no Brasil. Ao prendê-lo, esperavam chegar ao paradeiro do ex-capitão do Exército Carlos Lamarca, naquela altura considerado o inimigo número um do regime.
Eunice, a mulher de Paiva, e uma de suas filhas, Eliana, de apenas 15 anos, também foram detidas. O ex-deputado foi levado, no dia seguinte, para o cárcere do DOI na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, onde morreu na madrugada seguinte por não resistir a bárbaras sessões de tortura. Os torturadores, inicialmente, ocultaram o corpo no Alto da Boa Vista, e simularam uma fuga de Paiva do local. Em seguida, pelo temor de que a cova clandestina acabasse descoberta, transferiram os restos mortais para um ponto da Praia do Recreio dos Bandeirantes, Zona Oeste da capital fluminense.
A violência contra Paiva, um homem obeso e de meia idade, foi tão escancarada que os torturadores não se preocuparam em fechar a porta da sala, abafar os gritos do ex-deputado e ainda chamar um médico para examiná-lo, já moribundo. Por isso, não foi difícil para o Ministério Público Federal (MPF) chegar aos culpados.
Em 2014, ao cruzar depoimentos de militares da repressão e ex-presos com documentos do Exército e da comunidade de informações, o MPF decidiu denunciar o general reformado José Antônio Nogueira Belham, comandante do DOI em 1971, e o coronel reformado Rubens Paim Sampaio, ex-agente do Centro de Informações do Exército (CIE), por homicídio triplamente qualificado, ocultação de cadáver e associação criminosa armada. Já o coronel Raymundo Ronaldo Campos, oficial de plantão no DOI-I no dia 22 de janeiro, e os sargentos Jurandir e Jacy Ochsendorf e Souza foram acusados de fraude processual e associação criminosa armada.
A denúncia chegou a ser aceita pela 4ª Vara Federal do Rio de Janeiro, decisão ratificada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), mas não prosperou no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A Corte preferiu acolher um habeas corpus ajuizado pela defesa dos acusados, que alegou a ilegitimidade da Justiça Federal para conduzir o processo - que caberia à Justiça Militar, segundo sustenta -, a incidência da Lei de Anistia no caso e a prescrição da pretensão punitiva.
Se dúvidas restavam sobre o papel dos militares no caso, o coronel reformado Paulo Malhães, o “doutor Pablo", codinome usado por ele na repressão, tratou de afastá-las ao revelar que recebeu em 1974 a missão de sumir com os restos mortais de Paiva. Seus comandantes no CIE temiam que a ossada do ex-deputado pudesse ser desenterrada no Recreio. Malhães disse que uma equipe de 15 homens, disfarçados de turistas, passou 15 dias abrindo buracos — as escavações eram feitas dentro de uma barraca — até encontrar o corpo ensacado.
Malhães disse que gostava de “montar teatrinhos” em suas ações e era sempre acionado para consertar as “cagadas” dos colegas da repressão. Ele garantiu que não teve dificuldade de escavar durante duas semanas sem que os frequentadores do local desconfiassem. Os agentes tomavam banho de sol e mergulhavam para expressar naturalidade. Não havia coordenada precisa sobre a localização do corpo, mas apenas pontos de referência. Para a operação, foram usadas duas barracas civis - uma destinada às escavações e outra, à logística. As refeições eram fornecidas pelo CIE, conferindo caráter oficial à missão.
O coronel reformado acrescentou que, do Recreio, a ossada seguiu de caminhão até o Iate Clube do Rio, em Botafogo, na Zona Sul, onde foi embarcada numa lancha e lançada no mar. Para o êxito da missão, a equipe estudou o movimento das correntes marinhas para saber o momento certo em que os restos mortais iriam para o oceano. No mês seguinte à entrevista a este repórter, Paulo Malhães foi assassinado em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. As investigações atribuíram o crime ao ex-caseiro e a comparsas, em decorrência de desavenças com o patrão.
Acusados vivos
Dos cinco denunciados pelo MPF, restam vivos apenas o ex-comandante do DOI, general reformado José Antônio Nogueira Belham, e Jacy Ochsendorf e Souza, um dos militares envolvidos na montagem da falsa fuga.
Os procuradores da República, para formular a denúncia, ouviram 24 pessoas, colhendo mais de 30 horas de depoimentos. Um dos mais importantes foi prestado pelo coronel da reserva Armando Avólio Filho, que, na época, servia no Pelotão de Investigações Criminais da Polícia do Exército (PIC-PE). Ele contou que viu, por uma porta aberta, o ex-deputado sendo torturado pelo então tenente Antônio Carlos Hughes de Carvalho e levou o fato ao comandante do DOI, o então major Belham, no dia 21 de janeiro de 1971.
Um depoimento escrito, deixado pelo coronel Ronaldo José Baptista de Leão, ex-chefe do Pelotão de Investigações Criminais (PIC) do quartel da Rua Barão de Mesquita, confirmou a versão de Avólio. Já o coronel da reserva da PM Riscala Corbage, ex-interrogador do DOI, fez um relato inédito e detalhado sobre a tortura no destacamento, incluindo-se entre os carrascos.
Passeio pela Justiça
Além de trancar o processo no STJ, a defesa dos acusados ingressou com uma reclamação junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), alegando suposta violação da autoridade da decisão proferida pelo Plenário na Corte nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, que reconheceu a constitucionalidade da Lei de Anistia. O ministro Teori Zavascki, relator inicial da reclamação, deferiu a liminar a favor dos acusados em setembro de 2014.
A Procuradoria-Geral da República recorreu das duas decisões - o trancamento no STJ e a liminar no STF. Na época, foi autorizada pelo ministro Teori a ouvir as testemunhas mais importantes do caso, ainda que o processo estivesse trancado. Isso porque essas testemunhas tinham idade avançada e, caso a acusação vencesse a queda de braço com a defesa em algum momento, a instrução processual seria prejudicada.
Com a morte de Teori Zavascki em 2017, o acervo do ministro foi herdado por Alexandre de Moraes. Caberá a ele, como relator do Caso Rubens Paiva, decidir se arquiva a reclamação da defesa, pedido feito recentemente pelo procurador-geral Paulo Gonet. Mas a decisão importante ficará para o recurso extraordinário da PGR contra o trancamento da ação penal.
Moraes, que também é o responsável no STF pelo caso em que o ex-presidente Jair Bolsonaro e militares de alta patente são apontados como participantes de um plano para dar um golpe de Estado entre 2022 e 2023, sinalizou interesse no caso ao abrir vista ao Ministério Público Federal (MPF) no mesmo período em que o filme “Ainda estou aqui” enche as salas de exibição do país.
Procurado, o advogado dos acusados, Rodrigo Roca, disse que fica frustrado “como cidadão” ao constatar que até o cinema passou a funcionar como motor do Judiciário brasileiro. "O processo estava parado havia cerca de dez anos. Voltou a ser movimentado depois da première (do filme). A impressão que o país passa para o cenário internacional é que as agências públicas brasileiras só funcionam quando há alguém espiando", afirmou Roca.
"O cidadão deve ter muito cuidado com esses movimentos e essas produções providenciais. Não nos esqueçamos de que nos idos de 2006, as mesmas telas fizeram o mundo aplaudir a violência do Capitão Nascimento. E seguimos assim, como se o brasileiro precisasse sempre que um roteirista de humor instável - e gênio histérico - escrevesse o texto da sua próxima fala", prosseguiu o advogado.