Dias depois de o Brasil deixar o Mapa da Fome, o tarifaço confirmado pelo presidente Donald Trump nesta quarta-feira, 30, pode afetar diretamente a mesa dos brasileiros, colocando em risco a segurança alimentar.
O diretor de Abastecimento da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), Arnoldo Campos, explica que as sanções tarifárias dos EUA podem ter o efeito de um elástico sobre os brasileiros: primeiro causando uma baixa nos preços, com maior oferta no país, e depois desarticulando as cadeias produtivas, provocando desorganização e aumento de preços.
“Precisamos de uma reação à altura, com políticas públicas fortes para resistir”, disse ele em entrevista ao Amado Mundo. Campos foi secretário de Segurança Alimentar e Nutricional quando o Brasil deixou o Mapa da Fome da ONU, em 2014. Ele contou como o governo combinou políticas públicas e busca ativa para combater a miséria e a desnutrição.
Em entrevista ao canal Amado Mundo, o ex-secretário de Segurança Alimentar e Nutricional do governo Lula falou sobre a saída e o retorno do Brasil ao Mapa da Fome.
Leia a entrevista na íntegra:
O sr. estava no Ministério do Desenvolvimento Social quando o Brasil saiu do Mapa da Fome em 2014. Como foi aquele momento?
Quando Lula tomou posse, colocou como objetivo que as pessoas tivessem ao menos três refeições por dia e lançou o Fome Zero. Foi uma inovação: olhar para a pessoa e entender que não basta uma política isolada, é preciso levar um conjunto de soluções. O Fome Zero unificou ações como a transferência de renda, que foi fundamental, mas também políticas de aposentadoria rural, valorização do salário mínimo, formalização do trabalho, alimentação escolar, aquisição de alimentos, programa de cisternas, eletrificação rural… Tudo isso chegava ao mesmo CPF, combatendo as diversas dimensões da pobreza.
Com Dilma, veio o Brasil Sem Miséria, com a busca ativa. Se antes as pessoas vinham até as políticas, agora o Estado buscava quem ainda estava à margem. Isso permitiu acessar pessoas que nunca tinham tido apoio. O Brasil sempre teve comida, mas as pessoas não tinham renda nem acesso. E, com esse conjunto de políticas, conseguimos sair do Mapa da Fome em 2014. Eu era secretário na época. Foi um marco civilizatório. Infelizmente, voltamos, mas agora estamos saindo de novo.
Por que voltamos para o Mapa da Fome? Só por causa do desmonte dos programas sociais? A pandemia também teve impacto?
Eu fui muito ao campo, ao semiárido nordestino, e ainda escutava os depoimentos daquela época. Casas sem chão, sem luz, sem água. Crianças morriam de desnutrição. Quando isso acontecia, o sino da igreja tocava — e tocava com frequência. Isso acabou. E foi uma transformação civilizatória. As pessoas passaram a ter dignidade, acesso à educação, à comida. Muita gente dizia: “Agora sou rico, como carne todo dia”. Isso não foi obra do mercado. Foi política pública.
Com a mudança de governo, um dos primeiros alvos foi o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que cuidava de políticas fundamentais para o rural. A Secretaria de Segurança Alimentar também foi desmantelada. O programa de aquisição de alimentos, que teve orçamento de mais de R$ 1 bilhão, tinha R$ 3 milhões quando voltamos ao governo. Houve um desmonte institucional: faltavam pessoas, dados, sistemas. Sem isso, o Estado para de agir. A pandemia teve impacto, sim, mas não bastava distribuir cesta básica. É preciso direção política, orçamento, gestão — e isso tudo foi desmontado.
Quando o Lula voltou, ele reconectou as estruturas, mas reconstruir é muito mais difícil do que construir. Quando você implode um prédio, isso acontece em segundos. Levantar de novo leva tempo. E Bolsonaro não só desmontou, ele dinamitou as estruturas voltadas à população mais vulnerável. Por isso voltamos tão rapidamente ao Mapa da Fome.
O tarifaço dos EUA pode impactar nosso abastecimento?
Num primeiro momento pode haver uma sobra de produtos no mercado interno, como carne, o que pode baixar os preços. Mas é ruim porque desmonta cadeias produtivas. Exportar exige padrão de qualidade, anos de investimento. Cortar isso de uma hora pra outra destrói mercados.
O impacto pode voltar como um elástico: primeiro, queda nos preços; depois, desorganização e aumento. A agricultura familiar também vai sofrer. Produtos como mel do Piauí, açaí, castanha — tudo isso vai ser afetado. O governo já está mapeando os setores e preparando resposta. Estamos sob ataque, e hoje guerra não é só bomba. Precisamos de uma reação à altura, com políticas públicas fortes para resistir.
Como garantir que não haja uma demolição novamente dessas políticas públicas de enfrentamento à fome?
Muita gente pergunta isso. A resposta é: precisamos de políticas de Estado. Algumas políticas enraizaram, como o Bolsa Família. A extrema-direita sempre foi contra, mas não conseguiu acabar com ele. A alimentação escolar é outro exemplo: se acabar, 5 mil municípios reclamam. São políticas que criam resistência social ao desmonte.
Mas nem todas conseguem esse enraizamento. Então, o desafio é fazer com que o custo político de desmontar seja alto. Um exemplo: não reajustar o salário mínimo acima da inflação hoje tem um custo. A sociedade precisa estabelecer um pacto: abaixo disso, não aceitamos. Mas, infelizmente, ainda há setores que sustentam uma visão retrógrada, que culpam os pobres por serem pobres. E esse problema não é só do Brasil — o mundo inteiro vive uma crise de pactos civilizatórios. É difícil ter uma fórmula mágica. O futuro dessas políticas depende das escolhas da sociedade.