Ricardo Araújo Pereira, humorista em língua portuguesa mais conhecido mundo afora, andou pelas ruas da Festa Literária de Paraty, no domingo passado, 3, como se fosse mais um entre os milhares de brasileiros de diferentes partes do país que todo ano abarrotam as ruas de pé de moleque da cidade fluminense para conversar sobre literatura. Parecer um local não o faz passar despercebido. Com 1,93m e ar de galã quarentão, Araújo Pereira é cada vez mais famoso também no Brasil — país que frequenta profissionalmente há quase duas décadas e onde publica uma coluna semanal na Folha de S.Paulo e diversos livros. O mais recente é “Coisa que não edifica nem destrói”, que saiu pela Tinta-da-China Brasil.
A familiaridade com o Brasil veio também por ofício: seja porque o ajudamos a se tornar o humorista em língua portuguesa mais famoso no mundo, seja porque rendemos boas piadas. Essas, aliás, vêm ficando mais difíceis, ao menos na política. Em entrevista ao Lisboa Connection, videocast sobre Brasil e Europa do canal Amado Mundo, Araújo Pereira (youtube.com/@amadomundo) reclamou dos políticos que lhe vêm roubando espaço. Para ele, os discursos e comportamentos de líderes autoritários como Jair Bolsonaro e Donald Trump chegam a um tal nível de absurdo que são, por si, uma sátira.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista ou veja a íntegra no Amado Mundo, ao fim do texto. A conversa foi gravada em março, em Lisboa.
Os Estados Unidos governados por um sujeito de rosto laranja. Na política brasileira e na portuguesa, diversos tipos que beiram o ridículo. Isso é matéria-prima para você?
Parece boa matéria-prima, mas figuras como essas colocam um problema: normalmente pegamos num raciocínio político e o levamos ao absurdo. Elas já fazem isso sozinhas, e ficamos sem o que satirizar. Eu poderia dizer que a relação de Trump com Elon Musk é tão íntima e subserviente que, qualquer dia, ele estaria na Casa Branca vendendo um dos carros do Musk — e, na semana seguinte, ele fez exatamente isso. É um obstáculo à comédia que torna meu trabalho mais difícil do que se eles se comportassem como um ser humano [normal].
Há quem diga que quem é contra o politicamente correto, na verdade, só busca justificar piadas racistas e misóginas. Você concorda?
Não. Acho que é uma visão bastante simplista. Se perguntarmos se o Trump ou o Bolsonaro são contra o politicamente correto, a resposta será “sim”, eles estão sempre a dizer que são. Mas eu creio que o que eles pretendem é impor outro tipo de politicamente correto, o seu próprio. Ou seja, como se vê agora: o Donald Trump está a censurar universidades, pressionando-as, cortando financiamento para condicioná-las do ponto de vista da liberdade de expressão. Acho que, quando duas pessoas falam em politicamente correto, primeiro é preciso definir o que cada uma entende pelo termo, para que fiquemos certos de estar falando da mesma coisa.
Quando você fala sobre politicamente correto, do que exatamente está falando?
No Brasil, vi uma jornalista, ao comentar a política francesa, dizer que havia uma tentativa de “denegrir” o Macron. O apresentador interrompeu: “Calma, você deu um escorregão, vamos corrigir.” Ela se desculpou, então: “Sim, eu disse ‘denegrir’, que é uma palavra claramente racista.” Mas a própria expressão “claramente racista” também pode ser interpretada como racista, por conter a palavra “claramente”. Para mim, o mais perturbador foi perceber que, naquele programa transmitido num país onde mais da metade da população não é branca, não havia nenhum negro no estúdio.
Qual o seu critério?
Eu já usei linguagem racista deliberadamente em meu trabalho, quando estou a tentar satirizar o discurso dos racistas. Quando interpreto uma personagem que diz coisas absurdamente racistas — vale o pleonasmo, porque todo racismo é estúpido — estou usando o discurso para mostrar como é absurdo. Isso hoje é entendido como uma agressão, porque há até um conceito novo que diz que “racismo irônico é racismo”. Mas entendo que, quando interpreto uma personagem racista para fazer pouco dela, não pratico racismo irônico. Aquilo é a representação do racismo, do mesmo modo que, se um ator interpretar uma personagem que mata outra, aquilo não é homicídio irônico. É a representação do homicídio.
E quando alguém não entende a ironia?
Na New Yorker, um cartunista levou ao extremo a ideia racista de que o casal Obama — até por ele se chamar Barack Hussein Obama — seria um fundamentalista islâmico infiltrado. No desenho, apareciam na Sala Oval com kalashnikovs, turbantes, a foto de Bin Laden na parede e a bandeira americana a arder na lareira. Houve quem dissesse: “Entendo que é irônico, mas não devia ser possível fazer, porque alguns não vão entender e dirão: ‘Está vendo? Eu não disse que ele era um fundamentalista islâmico?’” Restringir a ironia para não confundir idiotas é submeter o discurso público ao critério deles. Se não percebem ironia, vamos deixar de usá-la? Isso é perturbador. Outro dia vi um post de um canal brasileiro com um asterisco: “Atenção: este vídeo contém ironia.” Como os avisos do tabaco. Fiquei perplexo: quando se é irônico, o primeiro cuidado é não anunciar. Assim como não se diz: “Vou tentar seduzi-lo.”
Você fala muito da sua interlocução com o Gregório Duvivier (os dois têm um show de humor juntos em Portugal). Quem são, no humor brasileiro, suas referências do passado? E quem são os seus interlocutores hoje, além dele?
Além do Jô Soares, do Chico Anísio e do Porta dos Fundos, eu destacaria dois nomes. O primeiro é Machado de Assis, autor com quem encontro parentescos em escritores portugueses como Camilo Castelo Branco ou Eça de Queirós. Acho que “Memórias póstumas de Brás Cubas” é um livro humorístico. Aliás, o Woody Allen, quando foi chamado a listar seus cinco livros preferidos, incluiu “Memórias póstumas”, que ele considerou absolutamente extraordinário, com razão. O outro é Luís Fernando Veríssimo, cuja casa, em Porto Alegre, tive a sorte de ir. É a pessoa mais doce e discreta e, no entanto, escreve textos hilariantes. Ninguém diria, à primeira vista, que ele é o mais engraçado de um grupo. Mas é.