Quando David Li fundou o Shenzhen Open Innovation Lab, em 2015, poucos fora da China prestavam atenção ao que acontecia nos galpões fervilhantes daquela cidade vizinha a Hong Kong. Mas quem entendia minimamente de tecnologia sabia que Shenzhen não era só mais uma cidade industrial — era o lugar onde o futuro estava sendo soldado, peça por peça, nas bancadas de milhares de makers, engenheiros e designers que transformaram a cidade na “fábrica do mundo”.
David sempre foi mais do que um pesquisador; é um hacker no sentido mais puro da palavra. Um curioso incansável. Cresceu frequentando feiras de eletrônica, desmontando rádios e, anos depois, ajudando a construir uma das comunidades de inovação aberta mais vibrantes do planeta. Veio na semana passada ao Brasil para participar de um congresso em Brasília. Na sexta-feira, 23, conversou com a coluna sobre esse universo, explicou as diferentes opções de regulamentação (ou falta dela) feita por Europa, China e Estados Unidos, e fez alertas.
Com cerca de 17 milhões de habitantes, Shenzhen é hoje um dos maiores polos de tecnologia do mundo — e talvez o mais ágil. Ali, uma startup consegue transformar uma ideia em um protótipo funcional em poucos dias, graças a uma rede hiperconectada de fornecedores, fábricas, engenheiros, designers e programadores que trabalham em ritmo de feira, não de corporação. “É uma cadeia de suprimentos horizontal. Quem faz o chip conhece quem faz a placa, que conhece quem faz o gabinete, que conhece quem faz o manual, que conhece quem vende”, resumiu David.
Enquanto boa parte do mundo discute inteligência artificial sob uma névoa de temor — ora como uma revolução inevitável, ora como um apocalipse anunciado —, a China avança em outra direção. Por lá, IA não é exatamente um mistério. É ferramenta, linha de produção. Modelos como o DeepSeek, de código aberto, estão rompendo o monopólio dos grandes laboratórios do Ocidente, permitindo que qualquer desenvolvedor, de Pequim a Nairobi, rode uma IA potente em servidores acessíveis — sem depender das big techs.
No congresso da Associação Brasileira de Internet (Abranet), em Brasília, onde apresentou um painel sobre o uso da IA na China, Li provocou a audiência ao comparar o debate regulatório da IA a um conto de fadas. “Hoje, muita gente fala de IA como se fosse um monstro mitológico que precisamos enjaular, mas não sabemos nem se esse monstro existe”.
No Brasil, as pessoas ainda não sabem exatamente como lidar com IA. Parte disso vem da falta de conhecimento, mas também do fato de que o próprio governo ainda não parece saber exatamente como regulamentar. Como você vê esse cenário, especialmente agora que passou um tempo no Brasil?
Atualmente, existem três grandes modelos de regulação da IA. O mais extremo é o europeu, que tenta regular até como a IA pensa, determinando como os algoritmos devem se comportar. Na China, por outro lado, a regulação não se aplica ao software em si, mas sim às pessoas que disponibilizam esse software online.
Na prática, na China, você pode treinar um modelo de IA em casa e fazer o que quiser com ele. Mas, se decidir colocá-lo na internet, terá que cumprir as regras aplicáveis à internet. Se incorporar o modelo em um software, terá que seguir as regulamentações desse setor. A IA, lá, é tratada como qualquer outro programa.
Já nos Estados Unidos, há ainda menos regulação — praticamente nenhuma específica para IA.
O Brasil, na minha visão, está tentando entender qual caminho seguir. E há uma questão mais profunda: a narrativa atual sobre IA não é mais uma narrativa tecnológica, virou quase uma narrativa religiosa.
Quando se ouve falar em AGI (Artificial General Intelligence ou Inteligência Artificial Geral) — uma IA com capacidade de realizar qualquer tarefa cognitiva que um ser humano possa fazer — e em SAI (Super Artificial Intelligence ou Superinteligência Artificial) — uma IA hipotética, muito superior à inteligência humana —, parece o anúncio da chegada de uma entidade divina. E, consequentemente, a regulação vira um mecanismo de defesa: “Meu Deus, isso é tão poderoso, como colocamos isso numa jaula?” Mas, se analisarmos com frieza, isso simplesmente não reflete a realidade.

Shenzhen Open Innovation Lab
Por quê?
Acredito que deveríamos encarar a IA como uma ferramenta. O momento certo para discutir regulação é quando ela estiver efetivamente aplicada e entendermos seus impactos. No entanto, atualmente, a discussão gira em torno de “como colocar um monstro mitológico numa jaula”, sendo que nem sabemos se esse monstro existe.
É como um conto de fadas: surge um monstro poderoso e construímos uma jaula para ele. Isso funciona bem como história para dormir, mas não como modelo de regulamentação. Na minha opinião, é um exagero.
Quando falamos sobre o uso ético da IA, se você pudesse resumir em alguns pontos principais aquilo com que as pessoas deveriam se preocupar — não porque a IA é um monstro, mas porque tudo precisa ser discutido —, o que você diria?
O problema é que as pessoas estão preocupadas com que tipo de informação perigosa a IA pode retornar. Mas a IA aprende com a internet. Portanto, quando falamos sobre coisas perigosas que a IA pode gerar, essas informações já estão na internet, estão em livros. Então, por extensão, será que deveríamos aplicar as mesmas regulamentações que estamos tentando aplicar na IA a todas as empresas de internet?
Se mudarmos o foco… Quão confortável você ficaria se aplicássemos as mesmas regulações da IA ao Twitter, ao Facebook ou até ao WhatsApp? Isso significaria monitorar todas as conversas de todo mundo.
Por exemplo, se eu começasse agora a te explicar como fazer biohacking (prática de modificar, otimizar ou alterar o próprio corpo ou organismos, geralmente usando ciência, tecnologia e biologia), o Zoom deveria cortar nossa comunicação? Porque, bem, não é assim que o compartilhamento de conhecimento funciona.
O mesmo vale para a IA. Algumas dessas regras que estamos discutindo dizem que o modelo é perigoso porque pode responder perguntas sobre modificação genética. Então deveríamos fechar os departamentos de biologia das universidades?
Portanto, sim, é bom pensar sobre regulamentação, mas deveríamos buscar mais consenso. O problema é que estamos tentando regular um monstro mítico que talvez nem exista. E, na verdade, do ponto de vista da maioria dos especialistas em tecnologia, esta geração de IA é provavelmente tão limitada quanto possível.
Precisamos de mais tempo para realmente entender o que a IA é, o que ela faz e o que ela pode fazer, antes de sairmos correndo para regulamentá-la.

David Li fundou o Shenzhen Open Innovation Lab em 2015
E como entender bem a IA? Na sua opinião, qual é a melhor maneira de entender a IA como um todo?
Basicamente, é usar. É tentar, experimentar, fazer coisas com ela. Levar um tempo para isso.
Grande parte dessa mentalidade de querer regular vem como uma reação inicial. Veja, o ChatGPT (modelo de IA criado pela empresa OpenAI, capaz de gerar textos, responder perguntas e realizar diversas tarefas de linguagem) tem pouco mais de dois anos. E sim, no primeiro dia que você abre o ChatGPT, fica “uau, ele escreve poesia”. Mas dois anos depois, ninguém mais se impressiona com uma IA que escreve poesia. Isso já se tornou algo esperado.
Então, é uma questão de usar, deixar isso amadurecer e, só depois, decidir como lidar. Porque, no começo, a reação é tipo: “Meu Deus, essa IA pode me ensinar biohacking.” Mas, seis meses depois, você percebe: “Bom, isso já estava na internet mesmo.”
E quais são os pontos positivos? Como as pessoas podem usar IA para melhorar sua vida diária, sua segurança, seu trabalho? Na sua opinião, qual é o maior benefício da IA nesse sentido?
A IA é só uma ferramenta. Eu gosto de estudar quem realmente usa a IA de forma prática e rentável. E não estou falando de ganhar dinheiro inflando o valor das ações, mas de usar ferramentas de IA no dia a dia para gerar renda.
Estudamos, por exemplo, os pequenos vendedores do mercado de Yiwu (uma das maiores feiras de atacado do mundo, localizada na China, que vende uma ampla variedade de produtos para exportação). Yiwu é um enorme mercado de commodities, que vende de tudo — desde enfeites de Natal, itens para festas, até souvenirs. Quando vocês sediaram a Copa do Mundo e as Olimpíadas, adivinha de onde vieram as bolas da Copa, as camisetas e os souvenirs? Vieram de Yiwu.
Yiwu é formado por 300 mil pequenos vendedores que vendem para o mundo todo. No ano passado, Yiwu fez cerca de 100 bilhões de dólares em vendas. Acho que 22 bilhões foram para a África e 19 bilhões para a América Latina.
Muito expressivo mesmo. Mas o mais interessante é que, se você vai a Yiwu, a maioria das lojas é composta por uma pessoa e dois funcionários. E eles costumavam ter muita dificuldade. Por exemplo, quando recebiam um novo produto, tinham que colocá-lo online.
Eles tinham que fazer uma descrição em chinês, jogar no Google Tradutor, depois subir no site. Era um processo demorado. Se tivessem mais recursos, até poderiam traduzir para mais idiomas, mas ainda assim era demorado. Desde escrever textos publicitários, traduzir, até editar imagens.
Hoje, se você olhar como eles usam IA, é assim: tiram uma foto do produto — digamos, uma meia colorida com desenho de Papai Noel —, a IA reconhece o que é, gera um texto publicitário, depois outra IA faz a tradução e, em seguida, outra IA cria o vídeo promocional.
Todo esse processo virou uma linha de produção automática. Em vez de gastar horas com fotos, textos e edição, agora, para cada produto, leva 5 segundos, e o conteúdo sai em 40 idiomas diferentes.
Nos últimos dois anos, a IA melhorou muito a produtividade nesse mercado. E podemos ver isso nos números: no ano passado, foram 100 bilhões de dólares em vendas, contra 80 bilhões no ano anterior — um crescimento de mais de 20%.
Esse é um exemplo. Outro exemplo são os agricultores rurais que fazem lives para vender seus produtos na China. Agora eles também são assistidos por IA. Nem todo agricultor sabe escrever um roteiro para uma live. Mas agora não precisam mais.
Eles mostram para a IA o que estão vendendo, a IA prepara o roteiro. Atualmente, até avatares virtuais animados por IA fazem as transmissões. Então, qualquer um pode fazer live commerce (modelo de vendas por meio de transmissões ao vivo).
A IA, claro, tem esse problema constante quando falamos de trabalho criativo. Para quem escreve, como nós, ela pode ser irritante, porque depois de duas páginas, começa a inventar coisas (alucinações da IA, fenômeno em que a IA gera informações incorretas, imprecisas ou até inventadas).
Se pensarmos bem, se nós escrevemos em um nível de qualidade 95, a IA está em 80, talvez 85 no máximo, mesmo nas versões mais recentes.
Isso é frustrante para quem já escreve bem. Mas, para quem está começando do zero, ter uma IA que opera a 85% de qualidade é simplesmente fantástico.
Portanto, tudo volta para aquilo que estão prometendo e para quem realmente pode se beneficiar disso. Ainda temos muito tempo pela frente para validar e entender para que a IA realmente serve. Acho que as pessoas deveriam passar mais tempo experimentando IA antes de pensarem em como regulamentá-la.
Porque a imagem que se tem da IA é muito facilmente distorcida. Você vê nos filmes de Hollywood… Então, acho que o melhor caminho é procurar entender as nuances. Observar quais grupos estão sendo empoderados pela IA, como estão usando a IA. Isso nos dá um modelo muito melhor de como ela pode realmente ajudar.
Parece que os europeus são mais cautelosos com a tecnologia e as mudanças.
Sim. O problema é que, no momento, boa parte da narrativa sobre IA está sendo dominada por países que estão absolutamente apavorados com ela.

Shenzhen Open Innovation Lab
Com base na sua experiência liderando o Shenzhen Open Innovation Lab, como você vê a inovação aberta e a cultura maker impulsionando o desenvolvimento da inteligência artificial de formas mais acessíveis e econômicas?
Na maioria das vezes, os participantes desse ecossistema estão na mesma região. Eles constroem uma cadeia de suprimentos colaborativa, que vai desde quem fabrica os produtos até quem projeta os circuitos e sistemas, passando por quem monta e, por fim, quem distribui e vende. Quando comparamos um ecossistema de inovação aberta com um modelo proprietário, percebemos que, no modelo fechado, todas essas etapas são restritas aos seus próprios membros — eles trabalham apenas entre si. Já no modelo aberto, qualquer pessoa pode participar em diferentes níveis, seja para competir ou colaborar.
Shenzhen é um excelente exemplo de como um ecossistema de inovação aberta funciona. É uma rede que abrange produtores, vendedores, criadores, designers e engenheiros. Nesse ambiente, qualquer pessoa pode entrar facilmente, desenvolver algo e colocar no mercado. Esse modelo tem sido estudado em diversos contextos.
Pessoalmente, estudei Shenzhen e outros clusters na China. Mas, muito antes disso, há uma vasta literatura sobre distritos industriais na Europa, além de estudos sobre cidades industriais nos Estados Unidos. Todos eles compartilham características fortes de inovação aberta. Atualmente, porém, a inovação está sendo cada vez mais dominada por modelos proprietários, impulsionados principalmente pelo Vale do Silício. Lá, uma startup levanta tanto dinheiro que acaba eliminando a oportunidade para outras.
Isso abre uma boa discussão sobre código aberto, especialmente quando falamos das limitações na exportação de hardware. Na sua visão, ferramentas e códigos open source ajudam a superar obstáculos financeiros e também questões de exploração?
Sem dúvida. O open source (ou código aberto) democratiza o acesso, permitindo que qualquer pessoa construa soluções. Em software de código aberto, o código-fonte fica disponível publicamente, podendo ser usado, modificado e redistribuído livremente por qualquer pessoa.
Um exemplo interessante é o Linux (sistema operacional gratuito e de código aberto muito usado em servidores, computadores, dispositivos móveis e sistemas embarcados), que recentemente encerrou o suporte ao processador Intel 486 (modelo de processador lançado no início dos anos 1990, hoje obsoleto). Isso mostra como o suporte em projetos open source pode durar décadas, enquanto no mundo proprietário esse suporte simplesmente desaparece.
E ilustra bem a longevidade e a otimização contínua proporcionadas pelo open source. Um exemplo atual é o DiVC (um framework open source desenvolvido para compressão e transmissão eficiente de vídeos por inteligência artificial, usado, por exemplo, no treinamento e execução de modelos de IA de maneira mais rápida e barata). Ele foi desenvolvido inicialmente para rodar em processadores potentes da Nvidia. Pouco tempo depois, já estava funcionando em processadores potentes das chinesas Huawei e Cambrian e de diversas outras. Isso demonstra claramente o poder do open source.
Então podemos dizer que o DiVC é um resultado direto desse modelo. Eu te ouvi falando no seu painel sobre várias pessoas programando e trabalhando com um objetivo comum, o que permite alcançar resultados mais expressivos do que depender de grandes corporações. Você acredita que isso é uma questão cultural, algo específico da China?
Não acredito que seja apenas uma questão cultural, embora as pessoas costumem pensar assim por estar acontecendo na China agora. Na verdade, o termo “open source” surgiu há cerca de 25 anos. Antes disso, já existiam muitos estudos sobre inovação sem propriedade intelectual, como o conceito de “inovação democratizada” (termo criado pelo professor Eric von Hippel, do MIT, que descreve processos de inovação conduzidos por usuários comuns, comunidades ou grupos colaborativos, em vez de grandes empresas).
Ele documentou diversos exemplos de comunidades que prosperaram sem as barreiras da propriedade intelectual. Se voltarmos ainda mais, veremos que os distritos industriais europeus, nas décadas de 1960 e 1970, operavam em modelos bastante abertos. As pessoas compartilhavam ideias, processos e métodos livremente, colaborando umas com as outras.
Se formos além, perceberemos que a própria lei de direitos autorais tem apenas cerca de 300 anos. Antes disso, tudo era, na prática, open source. Portanto, a inovação aberta é, na verdade, o estado natural de como as pessoas preferem trabalhar e inovar juntas.

Modelos como o DeepSeek, de código aberto, estão rompendo o monopólio dos grandes laboratórios do Ocidente
Parece até algo centrado no ser humano, de certa forma.
Perfeito. E para ilustrar, pense nas feiras de produtores. Elas são exemplos claros de ecossistemas de inovação aberta. Agricultores, especialmente os orgânicos, compartilham abertamente como produzem seus fertilizantes, como lidam com pragas e como otimizam seus processos.
Na agricultura orgânica, por exemplo, há um movimento open source muito conhecido chamado biodinâmico (um método de agricultura que combina práticas sustentáveis com princípios holísticos e espirituais, desenvolvido no início do século XX, cujas práticas são compartilhadas livremente entre os agricultores do mundo todo). O livro que guia esse movimento foi compartilhado globalmente entre os agricultores. Isso reflete exatamente como as pessoas preferem colaborar.
Direitos autorais, patentes e propriedade intelectual são apenas mecanismos temporários, criados para incentivar a inovação por meio da legislação. Quando olhamos para a origem das leis modernas de copyright, que começaram no Reino Unido, vemos claramente nos debates parlamentares da época uma espécie de confissão: “Sabemos que o modelo aberto é melhor para todos, mas somos muito mesquinhos para financiar a inovação. Então, vamos dar a você exclusividade e usar a força da lei para protegê-lo.”
Sendo assim, você acredita que a regulamentação não se encaixa muito bem na metáfora da feira de produtores?
Exato. Nenhum agricultor pensa: “Descobri a melhor fórmula para meu fertilizante orgânico, agora vou patentear isso e processar todo mundo.” Simplesmente não faz parte da lógica desse tipo de comunidade. E, de forma geral, também não pensamos assim no nosso dia a dia, na maneira como lidamos com colegas e parceiros.
O problema é que os direitos autorais e patentes foram levados a um extremo. Hoje, servem basicamente aos interesses das grandes corporações.