Ser uma mulher negra de sucesso incomoda o racismo brasileiro, e Djamila Ribeiro sabe disso. Filósofa, escritora e ativista, autora de livros como “Lugar de fala” e “Pequeno manual antirracista”, ganhou destaque ao traduzir temas complexos da filosofia e da teoria social para um público amplo, popularizando debates sobre desigualdade, gênero e raça.

Em entrevista ao Papo Amado, do canal Amado Mundo, Djamila falou sobre sua trajetória, marcada pela consciência racial transmitida pelo pai e pela espiritualidade do candomblé, herdada da mãe e da avó. A autora também falou sobre os desafios e incômodos que o sucesso de uma mulher negra provoca em um país racista e machista, refletiu sobre o valor da independência e da resistência.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista. Assista à íntegra em vídeo ao final do texto.

Na sua casa se falava de racismo?
Meu pai era militante do movimento negro e do Partido Comunista em Santos. Tive uma infância politizada: ele conversava com a gente, levava ao teatro e ao cinema, comprava livros. Lembro de ele dizer: “Olhem em volta, quantos negros têm aqui?”. E quando respondíamos “só a gente”, reforçava: “Por isso tem que estudar”. Desde cedo, aprendemos a importância de sermos negros e da classe trabalhadora, e a conexão com movimentos sociais. Minha irmã chama-se Dara e eu, Djamila, nomes de uma edição do Jornegro que incentivava uso de nomes africanos. Do mesmo jornal tirei o nome da minha filha, Thulane.

E de religão?
Meu pai era católico, mas frequentava pouco a igreja. Minha mãe, responsável pela espiritualidade em casa, era do candomblé, assim como minha avó Antônia, benzedeira em Piracicaba. Para lidar com a intolerância religiosa, minha avó também frequentava a igreja, mas praticava candomblé na Bahia escondida. No livro “Cartas pra minha avó”, há uma foto dela com roupa de santo, algo que nunca vi pessoalmente por causa disso. Minha mãe me levou ao candomblé quando criança e fui iniciada aos oito anos.

O lado religioso influenciou sua visão sobre o conhecimento?
Sem dúvida. O candomblé é minha base, não só como religião, mas como forma de ver o mundo. É um espaço que precisou criar estratégias para sobreviver e ensina a respeitar diferenças, como os orixás — distintos, mas que dançam juntos. Isso amplia minha visão de mundo. Tenho escrito sobre feminismo a partir das orixás femininas e levado o candomblé para o pensamento crítico.

Quando você começou a fazer suas próprias escolhas culturais?
A virada foi quando comecei a trabalhar na ONG feminista Casa de Cultura da Mulher Negra, em Santos. Meu pai era ativista, mas também homem, mulherengo e machista, embora quisesse que eu e minha irmã estudássemos e não dependêssemos de ninguém. Trabalhar na Casa foi uma continuidade do que aprendi com ele, mas também um rompimento. Lá entendi as questões das mulheres, num espaço liderado por feministas negras. Foi um divisor de águas.

Você ganhou relevância por difundir seu conhecimento onde a academia não chegava. Isso foi algo que aprendeu sozinha?
Minha origem no movimento social foi determinante. Na Casa de Cultura, estudávamos arte e cultura, fazíamos eventos e palestras. Foi lá que conheci Bell Hooks e li “O olho mais azul”, Toni Morrison, Simone de Beauvoir e Lélia Gonzalez, aos 19 anos. Ao entrar na universidade, aos 27, encontrei um currículo branco, masculino e europeu. Já sabia o que queria, mas enfrentei hostilidade por estudar autoras fora do cânone. Com colegas, criei um núcleo de estudos sobre raça, gênero e sexualidade. Em 2017, lancei a coleção “Feminismos plurais” para tornar a bibliografia acessível. Sempre fui uma acadêmica “outsider” e tomo como elogio quando dizem que escrevo de forma clara e popular.

“Lugar de fala” é um livro didático sobre um tema frequentemente mal interpretado. Para quem ainda não sabe, como você explica esse conceito?
Muita gente fala besteira, nem sempre por ingenuidade, porque incomoda. Quando discutimos desigualdade e poder, apontar que alguém fala de um lugar específico, da branquitude ou da masculinidade, desafia a ideia de grupos “universais”. Lugar de fala não é o que se fala, mas de onde se fala. Mulheres negras falam de um lugar marcado por desigualdades profundas, num país com quase quatro séculos de escravidão e estruturalmente machista. Pessoas brancas podem falar de racismo, mas de outro lugar, com consciência de seu contexto social.

Você é uma mulher negra de sucesso em um país racista. Sente que incomoda?
Desde que me tornei visível, sofri ataques e fake news. Pessoas não estão acostumadas a ver uma mulher como eu fora do papel que esperam, geralmente servindo a elas. Sobretudo pessoas brancas: “Ai meu Deus, que ela ganhou uma bolsa da Prada”. Eu estou vendendo minha força de trabalho, por que isso seria assunto no trending topics do Twitter? Aprendi que o incômodo é do outro. Sou independente, não filiada a partido nem ligada a grupos, e por isso apanho de muitos lados: sempre há quem queira que você esteja a serviço deles.

Você conseguiu fazer o mapeamento dos seus ancestrais?
Como os documentos da escravidão foram destruídos, perdemos o direito de saber de onde viemos. Eu só conheço minha história até os bisavós. Em 2021 fiz exame de DNA e descobri 80% de origem nigeriana, embora não saiba se Igbô ou Yorubá. Isso me conectou à [escritora nigeriana] Chimamanda Ngozi Adichie, que escreveu o prefácio da edição em inglês de “Lugar de fala”. Penso se nossa ligação e a generosidade dela comigo não têm relação com essa ancestralidade.

Você pratica Kung Fu, faz reiki. Isso tudo é saúde mental?
Tudo é sobre saúde mental. O Brasil é difícil. Brinco que não é para iniciantes, mas para iniciados no candomblé. Aprendi a priorizar minhas necessidades sem culpa. Faço Reiki, yoga, mantenho conexão com Shiva, Ganesha e Santa Sara. Preciso disso para não me tornar ressentida ou amarga, porque dores e opressões adoecem. Militantes mais velhas me ensinaram: cuidar de si é essencial. Passei por fases de raiva e ressentimento, e até ataques de pessoas que apoiei.

O que você diria pra quem tem que criar uma criança negra no Brasil?
Busquei curar minhas próprias feridas para não transferir dores geracionais. Fiz terapia e trabalhei traumas da minha mãe e avó. Quando minha filha tinha três anos, fui estudar em Guarulhos morando em Santos, contra opiniões contrárias. Ensinei a ela que ser mãe não é se abandonar e que ela é um indivíduo distinto. Ser mãe é aprender, reconhecer erros, pedir desculpas e se mostrar humana além da figura materna.