A aprovação do PL 2.162/2023 no Senado, na noite de 17 de dezembro de 2025, por 48 votos a 25, diz menos sobre uma controvérsia técnica de direito penal e mais sobre a disputa política em torno do 8 de Janeiro. O projeto saiu da CCJ para o Plenário em regime acelerado e seguiu para sanção em um gesto de afirmação do Legislativo, qual seja, a definição do “tamanho” das penas para crimes contra o Estado democrático não ficará apenas no radar do Supremo. O recado valeu para o Judiciário, para a oposição e para o Planalto.

O texto aprovado combina mudanças com efeito imediato. Ele altera o modo de compor a pena quando a mesma conduta é enquadrada em mais de um crime ligado ao ataque ao Estado democrático, reduzindo o impacto da soma integral e priorizando a pena do tipo mais grave com acréscimo fracionado. Também cria uma hipótese de redução de um terço a dois terços para os crimes de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado democrático de direito praticados em “contexto de multidão”, desde que o condenado não tenha financiado os atos nem exercido liderança.

Há, ainda, a redução do tempo mínimo para progressão de regime, com 16% da pena (um sexto) para passar do fechado a um regime mais brando e 20% para reincidentes, além de permitir que pessoas em prisão domiciliar possam remir pena pelo trabalho, não apenas pelo estudo. Esse desenho, para os defensores, corrige “excessos” e separa líderes e financiadores de participantes de massa. Para os críticos, rebaixa a gravidade de crimes contra a democracia e reabre uma disputa que o país ainda está digerindo.

Jair Bolsonaro sai como potencial beneficiário, num ambiente em que a responsabilização virou marcador identitário. Para neutralizar a crítica de que a mudança abriria um atalho para “crimes comuns”, o relator acatou uma emenda para restringir a aplicação da redução aos condenados pelos atos golpistas. Ainda assim, especialistas alertam para os efeitos colaterais em regras de progressão, justamente porque alterações na execução penal tendem a transbordar do caso político para o sistema como um todo.

É aí que o veto presidencial se torna provável e caro. O presidente Lula já sinalizou que vetará o projeto assim que ele chegar à sua mesa, reconhecendo que o Congresso pode derrubar o veto e negou ter sido informado de um acordo para liberar a matéria. Vetar preserva a coerência do discurso de defesa institucional do Planalto, mas cobra em coordenação política, pois a votação expôs atritos dentro do próprio campo governista e relatos de barganha, com denúncias de tentativa de atrelar a dosimetria a pautas econômicas como a discussão de alíquotas de bets e fintechs.

A forma como essa conta apareceu expôs o governo por dentro, uma vez que a ministra das Relações Institucionais e o líder do governo no Senado se criticaram em público, e a tese de “deixa votar porque depois veta” soou como confissão de perda de controle do processo.

A judicialização também tende a prolongar o desgaste, considerando que bancadas da Câmara já acionaram o STF, o que sugere que, com veto ou sem veto, haverá disputa no Judiciário e manutenção do tema na agenda.

O custo final depende do desfecho. Se o Congresso derrubar o veto, Lula não perde apenas uma lei, perde o sinal de que sustenta sua posição num tema central para sua base e oferece à oposição a imagem de vitória contra o STF e contra o Planalto. Se o veto for mantido, a disputa não se encerra. Antes, migra para a narrativa, em que a dosimetria vira degrau rumo a agendas maiores, como a anistia. Seja qual for o cenário, o projeto funciona como teste de força entre Poderes, e o presidente paga a conta de vetar mesmo quando vetar é a única saída coerente.

Fillipi Nascimento é cientista Social. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper