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Erika Hilton e a PEC do 6×1

A proposta de emenda constitucional (PEC) sobre a redução da jornada de trabalho 6x1 é um marco importante para a classe trabalhadora brasileira na história recente. É impossível dissociar o mérito desse projeto de quem o encabeça: uma mulher preta e trans que ocupa, de forma tão legítima quanto rara, uma posição de destaque na política nacional. Pretendo aqui discutir o impacto simbólico da liderança de Erika Hilton neste projeto.

O modelo 6x1, predominante em setores como comércio, restaurantes e supermercados, é o reflexo de uma lógica que historicamente tem priorizado o lucro empresarial em detrimento da qualidade de vida dos trabalhadores. Essa estrutura laboral, em que seis dias de trabalho são seguidos por apenas um dia de descanso, compromete a saúde física e mental, prejudica o convívio social e familiar e aprofunda uma sensação de alienação que já é comum em sociedades marcadas pela exploração do trabalho. A PEC, que agora segue para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara, dialoga com tendências globais que reconhecem que jornadas mais curtas podem resultar em maior produtividade e bem-estar geral.

O papel de Erika Hilton na liderança dessa proposta é carregado de significado. Sua trajetória como uma mulher preta e trans que superou e supera barreiras em um país profundamente desigual e excludente não pode ser ignorada. A política brasileira, tradicionalmente ocupada por homens brancos, tem sido um espaço de exclusão para pessoas como ela. Sua presença no Congresso Nacional, conduzindo um projeto de tamanha relevância, é um ato de subversão às estruturas de poder e um lembrete de que lideranças diversas importam não apenas como símbolo, mas como prática. Ter Erika Hilton à frente desse debate significa trazer para o centro da política institucional alguém que vivencia as múltiplas camadas de opressão que caracterizam a realidade de milhões de brasileiros.

Quando analisamos o mercado de trabalho no Brasil, observamos que as pessoas negras, as mulheres e a população LGBTQIAPN+ estão sobrerrepresentadas nos empregos mais precários e extenuantes. E nesse sentido, a luta por melhores condições de trabalho não se distancia da luta contra o racismo, o machismo e a transfobia. Ao propor a mudança na jornada 6x1, Erika Hilton nos lembra que a política tem o potencial de ser um espaço de reparação histórica e de enfrentamento às injustiças sistêmicas. Para os trabalhadores que vivem as consequências diretas da exploração laboral, a possibilidade de jornadas mais curtas significa mais saúde, mais tempo com a família, mais oportunidades para o lazer e para o desenvolvimento pessoal. Visto de outra forma, significa a chance de repensar valores que têm preconizado o lucro em detrimento da qualidade de vida do trabalhador brasileiro.

É certo que a redução da jornada de trabalho pode gerar impactos sociais e econômicos significativos, variando conforme o contexto cultural e institucional em que é implementada. Para uma análise mais aprofundada, é essencial considerar o significado dessa medida ao longo do tempo, compreendendo sua evolução tanto como uma decisão política quanto como um reflexo do desenvolvimento econômico e das dinâmicas sociais. No entanto, essa discussão pode ser prejudicada por incertezas e ambiguidades, principalmente quando não é sustentada por bases científicas sólidas, com robusta fundamentação teórica e evidências empíricas.

Mas também é preciso reconhecer que a oposição à proposta para reduzir a jornada de trabalho parece ir além do debate técnico ou científico. Embora seja possível encontrar justificativas que questionem a viabilidade econômica da medida ou seus impactos nos diferentes setores, é importante observar o quanto a figura de Erika Hilton como proponente desse projeto influencia o tom e a intensidade das críticas. Em que pese o conjunto substancial de estudos internacionais que demonstram que jornadas de trabalho mais curtas podem melhorar a saúde dos trabalhadores, aumentar a produtividade e até reduzir custos associados a doenças e ausências laborais, essas evidências acabam sendo abafadas por uma resistência que também se alimenta de preconceitos contra Erika, tornando a proposta alvo de críticas que não seriam tão inflamadas se conduzidas por outro parlamentar com o perfil tradicional da política brasileira.

Assim, as resistências à sua liderança nesse debate não refletem apenas dúvidas sobre a PEC, mas o incômodo que sua figura provoca em um sistema que tenta, a todo custo, se manter intacto diante de mudanças que vão além da redução da jornada de trabalho, mudanças que questionam privilégios historicamente sustentados por desigualdades.

Ao fim, a PEC da redução da jornada 6x1 é sobre mais do que trabalho. É sobre dignidade, sobre vida, e em última instância, sobre reconstruir o Brasil a partir das bases. A liderança de Erika Hilton nesse processo simboliza algo ainda maior: a necessidade de transformar a política e as pessoas que as protagonizam. Ela nos mostra que uma política mais representativa e mais conectada às reais necessidades do povo é possível e necessária.

Fillipi Nascimento é cientista Social. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper

"Os artigos publicados nesta seção não refletem, necessariamente, a opinião do PlatôBR."

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