Ao bater o portão de casa, Patrícia Simões Mendes Guimarães, de 32 anos, se virou e acenou para o pai, que a acompanhava pela janela. Era um hábito da professora, sempre na saída para o trabalho. Mas naquela manhã de terça-feira, 24 de abril de 2007, seria a última vez. Ela caminhou poucos metros até a esquina, atravessou a rua e, antes de chegar ao ponto de ônibus, um carro freou ao seu lado. Da janela, um dos ocupantes fez três disparos. Dois deles atingiram o tórax e o terceiro, o antebraço esquerdo da professora, que chegou sem vida ao pronto-socorro.
Patrícia (à esquerda na imagem em destaque) era uma mulher discreta. Professora de uma escola infantil, jamais relatou aos parentes sofrer qualquer tipo de ameaça.
Na melhor das hipóteses, a polícia fluminense resolve apenas um quarto dos homicídios dolosos no estado. Os demais acabam esquecidos em algum arquivo de delegacia. E este foi o destino do inquérito 026-01230/2007. Aberta pela 26ª Delegacia Policial (Méier), com o objetivo apurar o assassinato da Patrícia, a investigação de 222 páginas, a maioria delas preenchida por carimbos e assinaturas de delegados e promotores, seria arquivada em 30 de novembro de 2011 pela inexistência de “qualquer possibilidade de elucidação do fato criminoso”, como alegou à época o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ).
Uma frase dita 17 anos depois, no âmbito da investigação sobre os mandantes dos assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes, apontou finalmente o caminho para o esclarecimento do crime. “Foi coisa do Lessa”, revelou na carceragem onde se encontra o ex-PM Élcio Queiroz, condenado no último 31 de outubro a 59 anos de prisão por participar da execução da vereadora e de seu motorista. O relato de Queiroz impressionou pelo motivo banal que fez o pistoleiro Ronnie Lessa apertar o gatilho contra a professora. Ela pagou com a vida pela indiscrição de ter contado à mulher do matador, Elaine Pereira de Figueiredo, que Lessa tinha uma filha fora do casamento.
Oficialmente, o caso continua arquivado. Porém, algumas checagens, à luz da revelação dita por Élcio Queiroz, já começaram a ser feitas. Um caso de homicídio pode ser reaberto se surgirem novas provas, desde que não tenha ocorrido a extinção da punibilidade, como é o crime contra Patrícia. O desarquivamento de um processo criminal pode ser solicitado por qualquer interessado, como a parte ou o advogado, diretamente no cartório onde o caso correu, a 1ª Vara Criminal da Capital.
Ronnie Lessa, julgado junto com Élcio no 4º Tribunal do Júri do Rio, pegou 78 anos e nove meses de prisão no caso Marielle. Porém, como ambos são colaboradores premiados, cumprirão penas menores. Élcio, em torno de nove anos em regime fechado, com a hipótese de progressão para o semi-aberto em dois anos, pois já cumpriu quase seis anos. Já Lessa concordou em cumprir 18 anos em regime fechado, acrescidos de dois anos em semi-aberto e mais 10 anos em livramento condicional.
Sem a delação de Lessa e Élcio, a Polícia Federal não teria chegado aos nomes dos mandantes do crime, os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão, acobertados pelo então chefe de Polícia Civil, Rivaldo Barbosa – os três, presos.
Amigos de infância
Patrícia, Elaine e Élcio cresceram na mesma rua, a Eulina Ribeiro, no Engenho de Dentro, bairro na Zona Norte carioca. Na colaboração do caso Marielle, Élcio contou que conhecia Elaine desde os 12 anos e que se aproximou de Lessa há 30 anos, quando ele começou a namorar a sua vizinha. Em princípio, Lessa e o pai de Élcio, caminhoneiro, tiveram uma briga. Mas depois todos viraram amigos. Embora ambos tivessem integrado as fileiras da PM, Lessa e Élcio não chegaram a trabalhar na mesma unidade.
Na rua Eulina, a família de Patrícia morava em um sobrado, com dois apartamentos. Já a família de Elaine residia em um condomínio de cinco blocos. Seu irmão, Bruno, era mais notado na vizinhança por andar de bicicleta, mesmo depois de ter perdido, muito jovem, uma das pernas por causa de uma doença. Eles formavam um grupo de amigos até a fase adulta, quando cada um passou a seguir o seu caminho.
Desde jovem, Patrícia nutria o sonho de ser professora de escola infantil. Na segunda metade dos anos 1990, se mudou com a família para a rua Doutor Bulhões, a seis quadras do endereço anterior. Na época, Patrícia cursava Pedagogia na Universidade Gama Filho e namorava um rapaz de Campo Grande, na Zona Oeste. Continuava, mesmo distante, a ser amiga e confidente de Elaine.
Entre os mais próximos, Patrícia era chamada de Pati ou Dandara. Sempre discreta, sua máxima exposição era compartilhar imagens e trocar recados pelo Orkut, o precursor da cultura das redes sociais no Brasil. Acompanhou o namoro da amiga com o sargento da PM até ambos se casarem e, nos primeiros anos, morarem na Eulina Ribeiro.
Fama de valente
Lessa, a essa altura, já acumulava a fama de valentão nos quartéis. Dois anos depois do ingresso na PM, já fazia parte do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), onde permaneceu entre 1993 e 1997, mesmo sem ter feito o curso de "caveira". Foi promovido duas vezes por atos de bravura e, quando o governo do estado quis dar uma resposta dura à explosão dos casos de sequestro no Rio de Janeiro, foi requisitado em 2003 para fazer parte dos quadros da Polícia Civil, na condição de adido (cedido).
Lessa, como outros adidos, conhecia mais das ruas do que qualquer policial civil. Logo, destacou-se e ganhou respeito pela agilidade e pela coragem na solução dos casos. Essa fama, segundo os bastidores da polícia, chegou aos ouvidos do contraventor Rogério Andrade, na época cada vez mais ocupado em fortalecer o seu exército numa sangrenta disputa territorial com o também contraventor Fernando Iggnácio de Miranda. Estava em jogo o legado do bicheiro Castor de Andrade, morto em 1997.
Arregimentado por Andrade, Lessa não demorou a crescer na organização e ocupar o destacado posto de homem de confiança do chefe.
A primeira filha do casal, Mohana, nasceu em 1996. Eles se mudaram para Taquara, Jacarepaguá. Em março de 2005, quando Lessa já servia em trajes civis nas delegacias especializadas, nasceu uma criança fruto da relação extraconjugal do militar. Embora não se saiba as circunstâncias em que tudo aconteceu, a história paralela chegou aos ouvidos de Elaine e, por algum motivo, Lessa se convenceu de que Patrícia dera com a língua nos dentes. Resolveu, então, puni-la com aquilo que sabia fazer.
Em 2007, Patrícia vivia um momento especial da vida. Depois de estagiar em salas de ensino infantil na própria universidade Gama Filho, conseguiu uma vaga de professora em escola particular de Água Santa, bairro a poucos minutos de ônibus do Méier. No dia 26 de março daquele ano, um susto: ela foi assaltada na rua Clarimundo de Melo, esquina com Assis Carneiro, perto do colégio, em Piedade. Os bandidos levaram duas bolsas com agendas, cadernos e celulares. Em seguida, ligaram para a casa dela e pediram cartões para os celulares e dinheiro para devolver os aparelhos.
A família desconfiou que eram bandidos do Morro do Dezoito, comunidade de Quintino, também nas imediações.
O dinheiro não foi pago e nem os celulares recuperados, apesar do apelo de Patrícia, enviado por pessoas da escola a interlocutores do Morro do Dezoito.
A vida parecia ter voltado ao curso normal até que um Pálio, provavelmente cinza, cruzou pelo caminho da professora. Embora o inquérito sobre o crime padeça de informações, com testemunhas que nada viram e perícias que não serviram para coisa alguma, o modo de agir do matador é muito parecido com o que aconteceria no Estácio, Centro do Rio, onze anos depois, quando o Cobalt de Lessa e Queiroz fechou o carro de Marielle.
Na falta de uma razão clara, a família de Patrícia, atordoada e abalada, desconfiou de tudo. Uma hipótese apontou para os mesmos bandidos que a roubaram um mês antes. Como os chefes do Morro do Dezoito foram avisados do assalto, a família achou que os assaltantes levaram uma surra no morro e teriam se vingado da professora. Outra hipótese desconfiou do ex-namorado de uma amiga, supostamente ligado a milícias, que teria ameaçado a professora por pensar que ela envenenou a sua relação com a namorada.
Nada disso, contudo, foi confirmado. O suspeito até chegou a ser ouvido, mas apresentou um álibi convincente. Em novembro de 2011, sem insistir muito, a polícia optou por mandar o caso para o arquivo. Na época, o então titular da 26ª DP, delegado Carlos Augusto Leba, alegou que “havendo incidido o tempo, como se verificou – variável fatal em investigações de todas as espécies – sem que fosse plausível aliar a metodologia investigatória com o tanto de dados já escassos à época para os fins de elucidação, temos um feito que se pode dizer insolúvel, sorvendo recursos que bem poderiam estar exclusivamente destinados aquelas investigações que repercutem contemporaneamente”.
O Ministério Público, consultado, concordou com as alegações policiais.
Depois de perder a perna em atentado à bomba, em 2009, Lessa foi reformado e abraçou exclusivamente a carreira de assassino de aluguel. Desfrutou de uma blindagem que o fez acumular fama e riqueza até atirar em Marielle e Anderson. Preso desde 2019 e condenado a ficar preso pelo menos até completar 70 anos, vê da cela, uma a uma, as histórias das suas atrocidades emergirem. “Foi coisa do Lessa”, garantiu sem demonstrar dúvida o velho parceiro, ao falar sobre a morte trágica da professora Patrícia.