Gasto, Renda e Risco Fiscal
O Boletim Focus, órgão oficial dos mercados financeiros, inspira editoriais e opiniões que – dia sim, outro também – reafirmam suas crenças ao exorcizar o Risco Fiscal, Demônio de Plantão. As manchetes que encimam as peças opinativas repetem à saciedade: “O Problema é o Gasto”.
Entre as banalidades do momento econômico, manifestações do senso comum indicam a prevalência das concepções que entendem a anterioridade da arrecadação de impostos em relação aos gastos do Estado. É a falácia que proclama “Primeiro arrecada e depois gasta”.
Em suas habituais diatribes contra os turrões da ortodoxia, Paul Krugman distribui generosas cacetadas nos adeptos da austeridade. Premiado com o Nobel de Economia, o ex-colunista do New York Times questiona os “austeros” que equiparam o problema da dívida pública aos problemas da dívida de uma família. Se uma família acumulou dívidas demais, deve “apertar os cintos”.
Os governos não devem fazer o mesmo? A resposta de Krugman: uma economia não é uma família endividada. “Nossa dívida (privada) consiste principalmente de dinheiro que devemos uns aos outros. Ainda mais importante, nossa renda provém principalmente de vender coisas uns aos outros. Seu gasto é minha renda e meu gasto é sua renda. Assim, o que acontece se todo mundo reduzir gastos simultaneamente a fim de reduzir suas dívidas? Resposta: a renda cai.”
Quando se trata de cuidar do funcionamento da economia como um todo, ou seja, de questões ditas macroeconômicas, os vícios do senso comum e da microcefalia individualista levam a recomendações suicidas de política econômica, como as oferecidas entre 2015 e 2016 sob a batuta do Ministra da Fazenda de então, Joaquim Levy
Um outro exemplo de inconsistência conceitual está abrigado na separação entre oferta e demanda, apresentada nos manuais de Macroeconomia. A separação – o “lado da demanda” e o “lado da oferta” – não faz sentido para o tratamento da “economia como um todo”, tal como a concebia Keynes, o John Maynard. Em uma carta endereçada aos assessores de Roosevelt, Keynes desfiou argumentos a respeito das relações oferta e demanda.
“Nós produzimos a fim de vender. Em outras palavras, nós produzimos em resposta aos gastos. É impossível supor que nós possamos estimular a produção e o emprego, abstendo-se de gastar. Então, como eu disse, a resposta é óbvia.
Mas, em um segundo olhar, vejo que a questão tem sido encaminhada para inspirar uma dúvida insidiosa. Para muitos, gasto significa extravagância. Um homem que é extravagante logo se torna pobre. Como, então, uma nação pode tornar-se rica, fazendo o que empobrece um indivíduo? Esse pensamento desnorteia o público.
No entanto, um comportamento que pode fazer um único indivíduo pobre pode fazer uma nação rica. Quando um indivíduo gasta, ele não afeta só a si mesmo, mas outros. A despesa é uma transação bilateral. Se eu gastar minha renda para comprar algo que você pode fazer para mim, eu não aumentei minha própria renda, mas aumentei a sua.
Se você responder comprando algo que eu posso fazer para você, então minha renda também é aumentada. Assim, quando estamos a pensar na nação como um todo, devemos ter em conta os resultados como um todo.
O resto da comunidade é enriquecido pela despesa de um indivíduo. Sua despesa é simplesmente uma adição à renda de todos os outros.
Há apenas um limite para que o rendimento de uma nação possa ser aumentado desta forma: o limite fixado pela capacidade física de produzir.
Seria audacioso imaginar as considerações de Keynes acolhidas no debate vigente sobre gasto, renda e dívida pública. Nesse debate – outrora inspirado na concepção keynesiana de demanda efetiva – John Maynard buscou explicitar a conjugação entre os elementos objetivos e subjetivos que condiciona a decisão de acumular riqueza em uma economia monetário-financeira.
A construção do princípio da demanda efetiva supõe um tratamento não convencional das relações entre oferta e demanda: o preço de oferta agregada é definido como a expectativa de receitas – deduzidos os custos dos fatores – que os empresários esperam receber, caso ofereçam (nos dois departamentos: bens de produção e bens de consumo) um determinado volume de emprego e um dado nível de ocupação da capacidade instalada.
A demanda agregada é imaginada pelos empresários a partir das expectativas de rendimentos – deduzido o custo de uso – que esperam receber dos gastos em consumo e investimento por parte da comunidade, isto é, dos consumidores e dos próprios empresários.
A demanda efetiva é um conceito fundado no “estado de expectativas” dos que decidem a produção nos dois departamentos. Não se confunde, portanto, com o que se convencionou chamar de demanda agregada, um conceito-resultado.
A interrelação entre oferta e demanda determina um ponto em que se efetivam as decisões dos empresários-capitalistas, a partir de certo estado de expectativas. Esse ponto se desloca ao longo da curva de “demanda efetiva”, diante das mudanças das avaliações empresariais.
Keynes está afirmando a interdependência entre oferta e demanda na economia capitalista submetida às decisões dos protagonistas da cena socioeconômica, empresas, bancos, consumidores e o Lúcifer Estatal. As autoridades podem decidir gastar mais em uma situação de desalento do dispêndio privado. Não se trata de gastar a rodo, mas, sim de coordenar as expectativas dos empresários desalentados. Déficits ou superávits vão depender da resposta do setor privado ao estímulo do gasto público.
Se o governo corta o gasto e sobe a taxa de juros em uma conjuntura de encolhimento do gasto privado – empresas e famílias – a queda da renda “agregada” vai inexoravelmente levar a um aumento dos déficits e das dívidas públicas e privadas, com exacerbação do risco de crédito e efeitos indesejáveis sobre os balanços dos bancos financiadores. Essas são as lições exauridas de todas as crises e em todas as crises.
Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autor de vários livros, entre eles “Valor e Capitalismo” e “Os Antecedentes da Tormenta”, e ocupou cargos públicos como o de secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e o de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo
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