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Governo coloca ‘bode na sala’ e cria debate paralelo sobre pacote fiscal

Na estratégia para aprovar as medidas no Congresso, Planalto e Fazenda fazem um mix de propostas calculado para criar uma narrativa paralela e facilitar a tramitação na Câmara e no Senado

Fernando Haddad
Ilustração: Daniel Medeiros/PlatôBR

Seguindo a máxima de imperadores romanos e franceses de “dividir para conquistar”, a estratégia do governo para divulgar um pacote de controle de gastos públicos buscou desviar o foco das medidas impopulares, chamando atenção para bondades fiscais e colocando na mesa temas que costumam gerar frisson entre eleitores, em especial da classe média. Com isso, tanto a confusão na comunicação quanto a mistura de medidas de corte de despesas com isenções de impostos e taxação dos mais ricos vieram a calhar. O objetivo: colocar uns bodes na sala para conseguir a aprovação das medidas necessárias no Congresso Nacional.

Depois da tensão que o debate sobre a necessidade de cortes de despesas (incluindo programas sociais) gerou entre as alas política e econômica e, especialmente, dentro do PT, partido do presidente Lula, entrou em campo a lógica do marketing eleitoral. E é difícil acreditar que o ministro Fernando Haddad (Fazenda) foi vítima nesse processo. O mais político de todos os ministros da Fazenda dos últimos 30 anos, desde que Ciro Gomes e Fernando Henrique Cardoso ocuparam o cargo, Haddad sabe muito bem que em questões complexas como ajuste fiscal é preciso entregar algo que gere debate e crie uma narrativa em paralelo para conseguir o que se quer.

Praticamente todas as grandes reformas bem sucedidas da história econômica recente seguiram esse receituário. Some-se a isso o apoio de um marqueteiro que dá consultoria no Palácio do Planalto para caprichar no discurso com ênfase em indicadores econômicos e sociais, imagens inspiradoras e música cativante e está pronto um pacote fiscal misturado a propostas de reforma da renda.

Haddad gravou na noite de terça-feira, 26, numa sala do sexto andar da sede do Ministério da Fazenda, o pronunciamento de sete minutos em que divulgou as medidas sem detalhar nada. Na véspera, ele havia passado quase quatro horas em reuniões no Planalto. “Foi um pedido dele (presidente Lula) em função da complexidade dos temas que estão sendo tratados (no pacote de medidas)”, disse o ministro para explicar por que o anúncio foi feito em pronunciamento e, somente no dia seguinte, ele e outros 4 colegas de ministério deram entrevista à imprensa sobre o pacote fiscal.

Entre as medidas incluídas na lista do governo, pelo menos uma delas pode servir bem ao papel do bode na sala -- algo que atrai atenção, causa desconforto e de que, no fundo, se está até disposto a abrir mão para alcançar o objetivo desejado. É o caso da isenção do pagamento de IR (Imposto de Renda) para quem ganha até R$ 5 mil, que será financiada pela taxação dos mais ricos (renda superior a R$ 50 mil por mês) e pelo fim da isenção do IR para portadores de moléstias graves, como câncer e Aids, para quem tem renda acima de R$ 20 mil.

Promessa de campanha do presidente Lula, a isenção do IR é algo a que, politicamente, é difícil de se opor. Porém, ela está vinculada a outra que a própria equipe econômica já tentou fazer sem sucesso: taxar os super-ricos. O combo precisa de aprovação pelo Congresso Nacional, onde deputados e senadores são atingidos em cheio. O governo está confiante de que esse tema será discutido sem pressa em 2025 para, talvez, ser implementado a partir de 2026. Se não der certo até lá, a culpa não será do governo e, também, não haverá prejuízo nas contas públicas.

Dólar, câmbio e bolsa
No entanto, o anúncio da mudança no IR causou tensão nos mercados financeiros, fez investidores e analistas torcerem o nariz, o dólar disparar para a máxima histórica (R$ 6), o índice da bolsa de valores despencar e todo mundo falar sobre isso. Para a população, ficou o que vale para o governo: as bondades, entre elas a intenção do governo de isentar de imposto de renda quem ganha até R$ 5 mil. A volatilidade financeira foi o preço pago, mas acredita-se que ela iria ocorrer do mesmo jeito se o pacote incluísse apenas as medidas fiscais. Acredita-se que, ao longo dos próximos dias, os ânimos se acalmarão e os analistas irão precificar o reforço nas regras do arcabouço fiscal.

A reação inicial do mercado financeiro que, no início da semana, refletiu a preocupação de aumento de despesas com a medida do IR, focou nesta quinta-feira nas medidas fiscais, consideradas tímidas para frear a trajetória de elevação da dívida pública e equilibrar os gastos.

Por outro lado, nesse meio tempo, enquanto a atenção fica com as medidas de reforma da renda, o governo explica sem profundidade as iniciativas que, de fato, interessam para equipe econômica, mas que por não serem populares, quanto menos forem detalhadas, melhor. O material distribuído para a imprensa foi superficial, limitando-se a tratar mais do conceito do que das medidas em si. A entrevista coletiva com os técnicos da Fazenda e do Planejamento para explicações adicionais foi interrompida antes que tudo fosse esclarecido.

Mas a equipe econômica tem pressa para votação dessa parte do pacote. A PEC (proposta de emenda constitucional), o PLC (projeto de lei complementar) e o PL (projeto de lei) com as mudanças serão encaminhados ao Congresso ainda nesta semana, segundo Haddad, e acredita-se que possam ser aprovados ainda em 2024.

Nesse bolo estão as propostas impopulares, mas com impacto nas contas públicas, como redução do critério para ter acesso ao abono salarial (a renda máxima será reduzida do equivalente a dois salários mínimos, para o valor nominal de R$ 2.640 corrigido pela inflação), a criação de teto de 2,5% para o reajuste real do salário mínimo, cortes em subvenções e subsídios, maior controle para concursos públicos e a limitação para aumento dos repasses feitos ao governo do Distrito Federal por meio do Fundo Constitucional do Distrito Federal.

O dinheiro do fundo do DF é uma espécie de aluguel que a União paga por hospedar em Brasília os três poderes. Pela regra, o valor é um percentual da receita da União, que vem crescendo com o recorde de arrecadação. Agora, a correção será limitada à variação do IPCA, a exemplo do que já ocorre com outros fundos de desenvolvimento regional. A medida isola a bancada do DF no Congresso, já que é a única que teria interesse em brigar para reverter a alteração.

G20 e supersalários
A construção da narrativa para a divulgação do pacote se beneficiou ainda de agendas do governo como o debate sobre taxação de super ricos no G20, a inclusão da temática social no encontro dos líderes das maiores economias do mundo no Rio, o discurso de contribuição de todos os ministérios para o ajuste (que inclui os militares no centro do debate) e até vazamento estratégico de informações. Minutos antes do pronunciamento oficial de Haddad, o ministro Luiz Marinho (Trabalho) falou que o governo iria atacar os supersalários, numa referência aos funcionários públicos que ganham mais do que o teto constitucional (R$ 44 mil).

Fazer o ministro da Fazenda de fantoche do presidente e do marketing político o protege, à medida que o mercado segue ancorando as expectativas nele, assim como no novo presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, que também participou da reunião com Lula para avaliar as medidas. “O presidente quis ouvir todos”, disse Haddad. “O presidente dialoga com o país inteiro, com a expectativa das pessoas por justiça social, com uma série de anseios represados, o que é próprio de uma liderança com a estatura dele”, argumentou o ministro. “Ele ouviu e tomou a decisão”, completou.

Durante toda explicação das medidas, o ministro se mostrou bastante confortável e descontraído, mesmo quando questionado sobre a volatilidade financeira e sinalizou que a estratégia política pautou as medidas adotadas.

“Às vezes, colocar o Pé-de-Meia (programa de auxílio para jovens estudantes) dentro do orçamento da pasta de educação tem impacto maior do que a mudança na regra até 2028/ 2029 da vinculação (do crescimento dos gastos da área ao aumento da arrecadação federal)”, argumentou Haddad. “Às vezes, pelo valor já investido em Saúde muito acima do piso constitucional atual, vale mais a pena angariar mais receitas das emendas parlamentares”, seguiu exemplificando.

Segundo o ministro, “todas essas considerações foram feitas sobre cada ponto” do pacote. “Quando um apresentava a conta de que a medida ia causar ruído, podia prejudicar a aprovação e não ia trazer impacto, ninguém é teimoso para se negar a enxergar os dados”. Não à toa, a ministra Simone Tebet considerou que o pacote “foi o ajuste fiscal possível no aspecto técnico e no aspecto político”.

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