Longe de representar um alívio, o desbloqueio de cerca de R$ 20 bilhões anunciado pela equipe econômica na última terça-feira, 22, só foi possível graças a alguns subterfúgios e, muito provavelmente, será necessário um novo contingenciamento mais adiante. A avaliação é de Jeferson Bittencourt, head de macroeconomia do Asa e ex-secretário do Tesouro (governo Jair Bolsonaro). Para ele, o resultado fiscal proposto pelo governo Lula para 2025 e 2026 “é muito pouco” e representa um “alívio muito superficial”.

Em entrevista ao PlatôBR, Bittencourt afirma que a entrega dos compromissos fiscais está sendo feita “com base em alguns artifícios e receitas extraordinárias e, mesmo que não fosse com base nisso, seria totalmente insuficiente para controlar a trajetória de crescimento da dívida pública”. Segundo ele, a meta fiscal não representa a realidade das contas públicas brasileiras.

Para o ex-secretário do Tesouro, como o mundo vive um momento difícil, em que várias economias apresentam desequilíbrio fiscal, isso ajuda o Brasil a não sofrer tanto. Ele destaca, porém, que com a instabilidade gerada pela política protecionista de Donald Trump, o governo poderá precisar atender empresas que sofrerão prejuízos em meio a um quadro fiscal ruim e sem perspectivas de ajuste. Com isso, o Brasil precisará conviver com juros altos por mais tempo. “E quem consegue ter juros mais baixos? Quem consegue fazer o dever de casa e tem o fiscal mais equilibrado”.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Com a atualização das estimativas de receitas e despesas no relatório bimestral, o governo desbloqueou R$ 20 bilhões do orçamento de 2025. Isso sinaliza melhora no quadro fiscal?
Acho que é preciso analisar três coisas: a meta, o limite (de gastos) e se eles estão se propondo a entregar o que a regra fiscal promete entregar. A análise do relatório é muito parecida com a que a gente vai fazer na política fiscal até 2027, quando houver uma rediscussão dessa regra. A meta, a tendência é ser cumprida e está ficando mais fácil por duas razões. De fato, a receita estrutural está tendo um bom desempenho, mas porque o governo está arrumando receitas não recorrentes para fechar conta. O governo descontingenciou 20 bilhões de reais e a receita de petróleo foi de quase 18 bilhões. Ou seja, se não fosse a receita extraordinária do petróleo, não tinha descontingenciamento. Então, não é a receita estrutural, é a receita extraordinária que está garantindo.

A meta está mais fácil?
A meta está ficando cada vez mais fácil de ser cumprida porque tem um monte de abatimento, ela tem uma banda de cumprimento, tem um limite inferior e pode retirar os precatórios. A PEC 66 diz que só vai reconhecer 10% dos precatórios ao ano a partir de 2027. Também pode retirar da meta o pagamento do reembolso dos aposentados que sofreram fraudes. Considerando todas essas coisas: tem uma banda, um desconto, um waiver, a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal)… Aí fica mais fácil cumprir a meta, né? E tem receita extraordinária.

A meta está frouxa, então.
A meta está mais frouxa porque está recebendo um monte de descontos. Quanto é formalmente a nossa meta? Déficit zero. E quanto o governo pode entregar de déficit? Oitenta bilhões de reais e ainda assim vai ser considerado que a meta foi cumprida.

A meta não representa a realidade da atual situação fiscal?
Não, não representa. A meta tem que indicar qual é o esforço. O esforço é um déficit de 80 bilhões. Mas a meta é zero. Para o ano que vem, a meta é, formalmente, um superávit de 36 bi e você pode entregar 55 bi de déficit que ela será considerada cumprida. Então, a meta não está dizendo muita coisa.

E o limite de gastos?
O limite de gastos, que é o segundo ponto que falei, mostra que o governo está tendo dificuldades. Tem crescimento da despesa com o BPC (Benefício de Prestação Continuada), 2,9 bi, que teve que ser acomodado cortando despesa com pessoal e com subsídio. Na nossa visão, ainda teria que acomodar um crescimento maior de despesa obrigatória. Acho que tem mais despesa com BPC para acomodar na meta e mais despesa e mais despesa com Previdência e terá que ser feito mais um bloqueio em algum momento. O governo está fazendo esse reconhecimento do crescimento da despesa obrigatória de uma maneira lenta. Essa é outra tendência que vai permanecer até 2027, a despesa obrigatória crescendo mais rápido do que o limite de gastos e o governo tendo que dar seu jeito de entregar o limite. Por que digo “dar o seu jeito”? Pagamento das fraudes do INSS. Foi excluído do limite de gasto. Para 2026, a PEC 66 deve trazer uma elevação do limite que era vedado pelo arcabouço fiscal: aumentar o pé-direito do teto permanentemente. A PEC 66 vai aumentar. Então, está difícil cumprir o limite. E o que a gente faz? A gente coloca na Constituição que vai aumentar o limite, mesmo contra o arcabouço. Então, vai cumprir o limite? Vai. Desse jeito. As despesas obrigatórias vão continuar pressionando e o governo vai cortando algumas despesas e achando subterfúgios.

Você citou um terceiro ponto que é o que o governo está propondo.
O que eles estão propondo é suficiente? O governo está cumprindo a meta formalmente, desse jeito que eu estou falando. Mas e se fosse um cumprimento limpo, sem nenhum subterfúgio? A gente teria meta zero este ano e um superávit de 0,25% do PIB no ano que vem. O que está sendo proposto é absolutamente pouco ambicioso para a necessidade do controle. Digamos que o déficit zero fosse zero e não um déficit de 0,7% do PIB ou 80 bilhões de reais. Bom, a gente precisa de 2% do PIB (de superávit) para estabilizar a dívida. O que a gente está propondo é muito pouco e esse pouco a gente está entregando com subterfúgios. Então, o alívio é muito superficial. A tendência estrutural da situação fiscal do Brasil é muito forte e muito difícil de ser alterada. A entrega dos compromissos que o governo está fazendo está sendo feita com base em alguns artifícios e receitas extraordinárias e, mesmo que não fosse com base nisso, seria totalmente insuficiente para controlar a trajetória de crescimento da dívida pública. Ao longo do mandato (do presidente Lula), a dívida vai crescer quase doze pontos percentuais do PIB.

Como fica esse quadro diante do cenário internacional de crise com os Estados Unidos, tarifaço e sinalizações do governo de que será preciso socorrer alguns setores?
Se em coisas como o plano Safra, as fraudes no INSS, o governo está conseguindo emplacar na Justiça que ele consegue fazer por fora das regras fiscais, não tenho a menor dúvida que o socorro que vier para os setores que foram afetados pelo tarifaço serão feitos por fora da regra fiscal também. O pior é ver o que aconteceu no caso de alguns fundos privados: o governo capitaliza o fundo para fazer frente a um evento adverso, como a enchente no Rio Grande do Sul, e faz a despesa de aquisição de cotas dos fundos fora da meta. Só que quando ele saca (de volta) o recurso do fundo, traz tudo dentro da regra. Não conta a despesa primária para fins de cumprimento da meta quando faz o aporte no fundo, mas quando vende a cota, conta como receita primária para cumprir a meta. Da mesma forma vai ser feito em relação ao ressarcimento dos aposentados. O pagamento vai ser feito fora do limite, fora da meta, mas quando o governo conseguir recuperar o dinheiro dessas associações que promoveram as fraudes, isso vai entrar como receita primária e vai ajudar o cumprimento da meta. Esses subterfúgios todos estão no radar de todo mundo e, por isso, o cumprimento das metas não reduz significativamente o prêmio de risco.

Com o atual cenário internacional isso vai piorar?
Eventualmente, o governo vai ter que atender as empresas por conta do tarifaço com essa situação fiscal desequilibrada. A gente está num mundo onde os riscos e as pressões inflacionárias parecem muito maiores do que antes. Isso vai exigir custos mais altos, né? E quem consegue ter juros mais baixos? Quem consegue fazer o dever de casa e tem o fiscal mais equilibrado. Enquanto estiver todo mundo relativamente desequilibrado, talvez a gente não sofra tanto. Mas os outros países, em geral, têm uma facilidade maior para ajustar o fiscal: têm um percentual menor de despesas obrigatórias e cargas tributárias menores, ou seja, têm mais espaço para aumentar imposto e mais flexibilidade para cortar a despesa. Num cenário onde seja necessário um ajuste fiscal para enfrentar um período mais turbulento, a gente vai ter mais dificuldade. A nossa dívida é mais cara e maior do que a dos nossos pares. E onde a gente tem que mexer para fazer o ajuste fiscal? Na receita e na despesa. Na receita, a gente tem uma carga tributária muito maior que do que outro países. Seria também difícil aumentar, como a gente está vendo. E, por outro lado, 92%, 93% da despesa são despesas obrigatórias e precisaria fazer uma reforma.

Diante disso, quando o Banco Central pode começar a pensar em reduzir juros?
Isso vai depender da conjuntura. A gente entende que isso deveria ser levado até o início de 2026 para que houvesse a ancoragem das expectativas. Mas, agora, precisa ver o que vai acontecer depois de 1º de agosto e, num cenário mais turbulento, talvez fique mais difícil o Banco Central cortar agora. A gente está com uma taxa de juros restritiva. Teria espaço para cortar alguma coisa, mas realmente com esse desequilíbrio fiscal estrutural é difícil a gente pensar em cortes mais significativos. Quando o BC iniciar esse corte, vai ter que parar num patamar ainda elevado de juros.

Você acredita que o tarifaço vai mesmo valer a partir de agosto? Há tempo para negociar e reverter?
Tempo tem. Eu não sei se tem espaço. Aparentemente, o governo não está conseguindo evoluir muito no contexto diplomático e o que a gente tem visto é o pessimismo para conseguir evitar essas tarifas. As chances estão fora da ação do governo brasileiro, como, por exemplo, esses processos que as empresas americanas estão fazendo nos Estados Unidos contra o tarifaço por encarecer os seus serviços.